O Animal Cordial é mais um exemplo de que o cinema brasileiro se arrisca novamente no gênero terror (vide o bom O Rastro de 2017), porém ousa em desenvolver a trama no subgênero slasher movie, trazendo um filme forte e grotesco, palavras que melhor definem o longa a meu ver. Afinal, do que se trata?
A história se passa em uma única noite em um restaurante de classe média alta em São Paulo. Ao final do expediente, o local é invadido por dois ladrões armados. O dono do estabelecimento, o cozinheiro, uma garçonete e três clientes são rendidos e precisam lidar com a situação. O local torna-se palco dos mais diferentes embates: empregados vs patrão; ricos vs pobres; homens vs mulheres; brancos vs negros. Civilização e barbárie: os dois conceitos se alternam na claustrofobia de um espaço, que vai sendo desconstruído à medida que soluções “cordiais” se tornam impossíveis.
Ao me deparar com o filme, logo me fez lembrar de títulos como Hereditário, A Bruxa e Ao Cair da Noite, justamente por não conquistar o público na base de sustos fáceis e cenas clichês, mas sim em desenvolver uma narrativa psicológica em cima de temas pertinentes e até polêmicos como homofobia, abuso, submissão, poder, luta de classes, entre outros. Por não ser muito fã deste tipo de terror, confesso que fiquei com o pé atrás, no entanto, o filme me surpreendeu por trazer mais de uma interpretação dentro da trama, tornando o longa um bom exemplo para análise; personagens ricos, complexos e bem densos em suas camadas, cenas muito grotescas, violentas e cheias de sangue; uma trama que faz você pensar em várias coisas, vários caminhos, mas que entrega um final aberto para que o público continue a refletir.
Como disse em críticas anteriores, repito que há filmes de terror, nos dias de hoje, que não cairá no gosto de todo mundo e isso é completamente compreensível. O Animal Cordial é um deles justamente por desafiar o espectador a encarar o gênero de uma forma bem inusitada, trazendo reflexões densas sobre uma sociedade deturpada. No filme, assim que entramos no restaurante e damos de cara com o clima estranho do local, o susto vem logo quando os assaltantes invadem e amedrontam, especialmente por terem algumas cenas bizarras e difíceis de ver. Mas o absurdo mesmo não está no assalto em si, mas nas reações daqueles que estão vivendo o momento, que fica ainda mais tenebroso com as atitudes.
De um lado, temos os assaltantes que, mais do que levar o dinheiro, abusam da clientela, especialmente de Verônica (Camila Morgado). É com esse gatilho que as reações mais estranhas se iniciam, colocando a própria cliente em uma sede de vingança em querer dar o troco por a terem colocado em uma situação constrangedora. Claro que isso é provocado pelo próprio dono do restaurante Inácio (Murilo Benício), que não pensa duas vezes e reage mostrando uma superioridade assustadora sob todos do recinto.
A partir daqui, fica difícil detalhar uma vez que qualquer coisa que eu fale se torne um spoiler para quem ainda não assistiu. O que posso dizer é que assim que Inácio toma esse posto de líder, medidas nada cordiais são tomadas, rendendo cenas fortes, frias, nojentas e repudiantes. O poder que ele ganha ao ter uma arma nas mãos faz os clientes ficarem submissos a ele. Chega a ser irônico, uma vez que alguns personagens com um ar ameaçador se tornam ofensivos, enquanto os “mais bonzinhos” se tornam os mais nocivos.
Diante do assalto, o filme inicia várias discussões como a justiça feita com as próprias mãos, o instinto de vingança e muitas questões de preconceito, especialmente com o chef Djair (Irandhir Santos) por ser homossexual. Em determinado momento, é possível sim pensar na possibilidade de canibalismo, pois a trama dá abertura para que essa situação venha acontecer. Não vou dizer os motivos que levam a isso, mas quem for assistir vai entender o que estou querendo dizer.
À medida que a trama se desenvolve, ela ganha um tom pesado e cada vez mais grotesco, rendendo cenas bastante desconfortáveis de assistir. Há pelo menos dois momentos brutos que impactam: a cena de sexo e a cena final. Justamente por ser do gênero slasher movie, o que mais o público vai se deparar é com a violência gráfica e extrema, repleto de muito sangue. Aliás, quem não gosta ou não tem estrutura para cenas explícitas como O Animal Cordial apresenta, é melhor pensar duas vezes antes de assistir.
Com relação aos personagens, há três que se destacam. Tenho que começar falando de Luciana Paes e de sua interpretação bruta, entregando uma garçonete ingênua, boba, certinha e com bom comportamento no trabalho. Mas assim que o público se envolve no clima de suspense, ele encontra camadas estranhas em Sara, que se torna uma mulher submissa em determinados momentos e primitiva. Ver essa transformação da atriz na tela é simplesmente formidável.
Murilo Benício não fica para trás e entrega um personagem dúbio e até difícil de julgar, uma vez que não sabemos direito quais são suas verdadeiras intenções já que suas atitudes nos levam a várias interpretações, ou se simplesmente ele é uma pessoa ruim e perturbada, levando uma questão de tempo para descobrirmos sua verdadeira identidade.
Irandhir Santos entrega um personagem com um ar heroico meio torto, uma vez que ele não é perfeito, mas toma decisões ousadas que a ocasião exige, enfrentando os mais autoritários, especialmente seu patrão.
Camila Morgado e Ernani Moraes também têm seus bons momentos em tela, enquanto Humberto Carrão e Jiddu Pinheiro tornam-se meras vítimas da situação. Não há tanto destaque para eles, mas os personagens também não prejudicam a trama.
Considerações finais
O filme termina em aberto, dando a possibilidade de mais interpretações, o que pode frustrar alguns espectadores que preferem uma conclusão fechada e sustentável nas mãos. O Animal Cordial é mais um acerto do cinema nacional, especialmente no gênero terror, pois entrega um filme denso, interpretativo, personagens complexos e subtramas repletas de reflexão. Este não é um tipo de filme que cairá no gosto de todos, mas é uma história que vale a pena dar uma chance.
Ficha Técnica
O Animal Cordial
Direção: Gabriela Amaral Almeida
Elenco: Murilo Benício, Luciana Paes, Camila Morgado, Irandhir Santos, Ernani Moraes, Humberto Carrão, Jiddu Pinheiro, Ariclenes Barroso, Thais Aguiar, Eduardo Gomes e Diego Avelino.
Duração: 1h36
Nota: 7,5