Quando vemos um livro ganhar vida no cinema espera-se, no mínimo, que alguns aspectos da história original sejam mantidos na obra cinematográfica. Eu sou uma pessoa que compreende que a maioria das adaptações não segue à risca a obra original, mas ainda assim mantém o formato, as características principais e os personagens. No entanto, quando uma história perde completamente a sua essência fica bem difícil de defender. Infelizmente, o filme original da Netflix, Death Note, é uma adaptação rasa que foge completamente da proposta do mangá. Mesmo sem fazer qualquer tipo de comparação com o original, o longa dirigido por Adam Wingard apresenta problemas no roteiro e personagens que não são explorados como deveriam ser, a ponto de entediar quem estiver assistindo.
Segundo o próprio diretor, a trama é uma adaptação do mangá escrito por Tsugumi Ohba e ilustrado por Takeshi Obata. A história acompanha Light Turner (Nat Wolff), um estudante do ensino médio que encontra um caderno sobrenatural chamado Death Note e percebe que nele existe um grande poder: se o proprietário escrever o nome completo de alguém enquanto estiver pensando em seu rosto, a pessoa morrerá. Embriagado por sua nova habilidade divina, o rapaz começa a matar aqueles que julga indignos de viver.
Essa é a sinopse oficial do filme e, a princípio, o longa cumpre em apresentar a proposta principal: um garoto que começa a matar pessoas escrevendo os seus nomes no caderno. Até aí, OK. Qual é o grande problema? Vamos analisar a trama sem fazer qualquer tipo de comparação com o mangá ou o anime. Em primeiro lugar, o roteiro apresenta uma história corrida. Os acontecimentos rolam na tela de forma muito rápida, jogando as informações em cima do telespectador sem que ele tenha um conhecimento aprofundado sobre a história. Ou seja, quem não conhece o anime ou o mangá, vai acreditar que a história é daquele jeito, certo? A sinopse diz que Light fica “embriagado” pela sua nova habilidade divina, uma vez que ele pode decidir quem vai morrer. A verdade é que o personagem não sabe exatamente o que fazer com o caderno e ele SÓ começa a escrever os nomes, após ser induzido pelo Deus da Morte, Ryuk. Além disso, o garoto fica sob grande influência de Mia (Margaret Qualley), uma vez que a garota se apaixona por ele e faz de tudo para defendê-lo daqueles que querem capturá-lo. Mais do que isso, o filme dá muito mais ênfase a esse amor não tão convincente entre os dois, deixando de lado o dilema em usar ou não o caderno e como esse “poder” modifica a personalidade do protagonista. Aqui, Death Note nada mais é do que um caderno “atrapalhando” o romance de dois adolescentes. Sinceramente, esse tipo de enredo é chato e não conquista o telespectador, uma vez que o interesse maior é saber como o caderno da morte funciona e a capacidade de influenciar o seu proprietário.
Alguns podem dizer que Death Note é um suspense. Para mim, de suspense não tem absolutamente nada, pois todos os elementos surpresas são entregues facilmente em quase todas as cenas, sem deixar o telespectador surpreendido por tal atitude ou ação do personagem. Quem assistiu, sabe do que estou falando. Com todas as jogadas e manipulações entregues logo de cara, o final da trama, além de ficar aberto, é bobo e previsível demais. Agora vou fazer comparações com a história original para tentar explicar o quão ruim o filme é. A partir daqui, o texto conterá SPOILERS.
História complexa demais para adaptar?
Tanto o mangá quanto o anime apresentam uma história complexa e ricamente detalhada. Em uma adaptação, é compreensível que algumas cenas, alguns plots e até certas características fiquem de fora. No entanto, Death Note perde completamente a essência da obra original e a culpa não é do tempo de duração do filme (1h40min), mas do roteiro mal feito. Há duas grandes essências do mangá/anime. O primeiro é ver o conflito interno de Light com relação ao caderno. Por ser filho de um detetive e desejar trabalhar nessa área, o personagem vê a oportunidade infalível de corrigir as injustiças que acontecem ao seu redor. Mais do que isso, o mangá/anime discute o dilema de vingança e justiça e como este alimenta o egocentrismo que cresce dentro do protagonista a ponto de se autointitular “o deus do novo mundo”. O segundo ponto é que na obra original vemos um jogo psicológico, inteligente e provocativo entre Light e o investigador ‘L’ e essa parte mais maravilhosa da história é deixada de lado no filme da Netflix, colocando o telespectador diante de um romance bobo que é atrapalhado pelo caderno.
Outro defeito do filme é que ele não se preocupa em explicar direito o funcionamento do Death Note. Algumas regras são lidas no decorrer da história, mas o roteiro não dá espaço para explicar direito como essas regras se aplicam neste jogo de vida ou morte. Por exemplo, vocês sabiam que é possível o proprietário do caderno enxergar o nome da pessoa e sua expectativa de vida (Olhos de Shinigami)? Mas tal poder só é adquirido se o proprietário do caderno entregar ao Deus da Morte metade de sua expectativa de vida. Ou seja, se ele for viver 50 anos, viverá apenas 25. Outra coisa que o filme nem se preocupa em explicar direito é que, caso o proprietário não queira mais o caderno, ele terá a sua memória apagada pelo seu Shinigami e, assim, nem imaginará que, um dia, teve esse tipo de poder em suas mãos. No entanto, caso ele toque novamente no caderno, todas as memórias retornam.
Com relação às mortes, as cenas são boas, bem violentas e explícitas. No entanto, falta sutileza nesse quesito. No mangá/anime, a pergunta “quem é Kira?” cresce à medida que as mortes misteriosas aumentam gradativamente, com meras paradas cardíacas até uma bala no peito ou na cabeça. Aqui, a trama já começa com uma cabeça decapitada. É forte, porém, tira toda a graça do mistério que envolve o caderno da morte.
O roteiro também não se propõe em explicar direito como as mortes podem acontecer. Nas regras, se a causa da morte for escrita dentro de 40 segundos após o nome ser escrito, assim ela acontecerá. Se a causa da morte não for especificada, a vítima morrerá de ataque cardíaco. Se a causa da morte for especificada, os detalhes podem ser escritos nos 6 minutos e 40 segundos seguintes. Obviamente, esses detalhes e muitos outros que não citei fazem muita diferença, mas o filme não explica e deixa todos eles completamente superficiais e jogados na trama.
Um Deus da Morte intrometido
Ryuk (dublado por Willem Dafoe) ganha uma caracterização boa e medonha, um ponto positivo do filme. O Deus da Morte ganha uma personalidade bem modificada, tornando-se intrometido e influenciando nas decisões tomadas por Light. Na obra original, o próprio Shinigami deixa claro que é um mero espectador dos mortais e completamente imparcial às decisões tomadas pelo proprietário do caderno. No filme, ele aparece assim que o rapaz coloca as mãos no Death Note e ainda o induz a escrever no caderno, sem ao menos deixá-lo tomar essa atitude por conta própria. Quando tive conhecimento sobre o personagem, havia me decepcionado pelo fato dele não explicar sobre o caderno e ajudar o proprietário, mas a verdade é que a proposta é exatamente assim: ele apenas estar presente enquanto o dono atual do death note toma todas as decisões até desistir ou morrer.
Personagens distorcidos
A distorção dos personagens é o que mais afeta a trama. Se no mangá/anime temos um protagonista egocêntrico e extremamente manipulador, nessa nova trama temos um Light inseguro e manipulado. O fato de o personagem ter medo é normal, mas ao invés de usar tal sentimento a favor de fortalecer o nome de Kira pelo mundo, ele se deixa abalar e se influenciar pelas sugestões dos demais, especialmente de Mia. Na obra original, Light entra em uma escuridão, misturando o lado justo com o insano despertado pelo caderno. Neste Death Note, Light é medroso, não sabe o que está fazendo e, o pior de tudo, é que todo o mistério vai por água abaixo quando ele abre o jogo com Mia. Simplesmente não faz sentido fazer isso. Se a ideia era introduzir a garota na trama, havia muitas outras formas de fazer sem estragar a história.
Além do jogo psicológico e provocativo ter ido por água abaixo, o personagem ‘L’ é completamente desestruturado no longa. O personagem, interpretado por Lakeith Stanfield, até consegue apresentar algumas características peculiares do personagem da obra original, como o jeito de sentar na cadeira, a forma como ele manipula os objetos com as pontas dos dedos e a razão dele comer tantos doces. Mas o pouco dessa essência é descartado assim que vemos um ‘L’ agressivo e com atitudes completamente fora do seu padrão. No mangá, ‘L’ conquista com o sua inteligência rara e a forma como ele conecta as pistas ao estilo Sherlock Holmes. Aqui, a adaptação do personagem não mostra nem um terço do que ele é de verdade. Ele simplesmente diz que sabe das coisas, mas não se importa em mostrar o caminho que faz para chegar nessas pistas. Ele se expõe ao mundo, algo que o ‘L’ do mangá/anime jamais faria. Ele perde completamente a cabeça quando a situação sai do controle e confronta Light logo de cara, enquanto no mangá, ‘L’ é sutil e provocador ao ficar cara a cara com o protagonista. Enfim, são tantas coisas erradas que se eu for escrever mais, o texto vai ficar mais longo do que já está.
Nem preciso falar que a Mia é uma adaptação mal feita da personagem Misa, né? Ela até apresenta algumas similaridades com a garota do mangá, mas novamente temos a essência da personagem perdida devido ao roteiro mal escrito. Na obra original, Misa conhece Kira e fica obcecada por ele quando ela também recebe o seu death note. No filme, a obsessão permanece, mas a forma como a personagem é introduzida é ridícula, uma vez que o próprio Light conta tudo para ela, deixando a garota apaixonada por ele repentinamente e sedenta em colocar as mãos no caderno.
Considerações finais
Se o filme todo é ruim, o final é pior ainda. Sem comparações com o a obra original, Death Note é um filme com problemas, sem graça e superficial. Comparado ao mangá ou anime, o filme está longe de ser uma boa adaptação. Como disse, é normal apresentar algumas modificações, no entanto, a história perde a sua essência e os elementos surpresas, os personagens são distorcidos, o jogo psicológico é descartado, o conflito interno do protagonista e o dilema sobre justiça e vingança não são explorados como deveriam ser e a trama sobre o caderno da morte torna-se irrelevante. Uma decepção do começo ao fim.
Ficha Técnica
Death Note (Netflix)
Direção: Adam Wingard
Elenco: Nat Wolff, Margaret Qualley, Lakeith Stanfield, Willem Dafoe, Paul Nakauchi, Shea Whigham, Jason Lies, Jack Ettlinger, Matthew Kevin Anderson, Chris Britton, Timothy Lambert, Kwesi Ameyaw, Justin Stone, Christian Sloan e Artin John.
Duração: 1h40min
Nota: 2,0
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