Em diversos filmes vemos o término de um namoro como ponto central da trama. Mas e o fim de uma amizade? Você já presenciou em algum longa? E quando a relação entre dois amigos chega ao fim serve como estopim para a história? Este é o gatilho de Os Banshees de Inisherin, uma produção que chama a atenção pela premissa, possível de acreditar até ser uma comédia, cuja atmosfera até existe, mas tanto o pano de fundo quanto a narrativa entregam um drama que faz o espectador analisar os detalhes a volta, como também se identificar com a temática amizade. Um filme que toca no coração de forma certeira, especialmente sob uma perspectiva mais sentimental.
******COM SPOILERS******
A direção é de Martin McDonagh – responsável pelo incrível Três Anúncios Para Um Crime – e a trama se passa na ilha fictícia de Inisherin, em 1923, durante a Guerra Civil Irlandesa, onde acompanhamos os pacatos moradores deste local isolado, com pouco lazer e responsável por turbinar as emoções e moldar quem mora lá.
Aqui acompanhamos Pádraic, um homem extremamente gentil, que divide a casa com a irmã Siobhan e cuida dos animais que dão seu fruto financeiro. Ele fica completamente abalado quando, repentinamente, seu melhor amigo de longa data, Colm, decide terminar a amizade da noite para o dia. Confuso, devastado e sem entender direito tal decisão, Pádraic tenta reatar a amizade com o apoio da irmã e do colega da ilha, Dominic. Mas quando Colm lança um ultimato chocante e diz que tornará suas intenções em uma realidade drástica, o fim de amizade passa dos limites e a situação se intensifica cada vez mais.
Se você não souber de absolutamente nada sobre este filme, talvez é possível até passar batido. Mas ao ficar ciente da premissa, o longa desperta curiosidade com a tamanha genialidade ao trazer um recorte específico da vida: o fim de uma amizade. Como aceitar? Como lidar? Como seguir em frente quando não há um ponto final?
Crítica: Tudo Em Todo O Lugar Ao Mesmo Tempo
A princípio, o longa demora um pouco para entregar as motivações para o fim desta amizade, o que faz o público ficar na mesma posição de Pádraic. Mas quando Colm entrega algumas das razões para que eles deixem de ser amigos, em parte, compreendemos o seu lado, mesmo que as justificativas sejam fracas, e torcemos para que a outra parte também compreenda, o que não é o caso. Pádraic vai até as últimas consequências para esta amizade não acabar, o que resulta em situações constrangedoras, muito irritantes, sufocantes, tristes e, até mesmo, chocantes.
À medida que o público mergulha no desenrolar dessa amizade eclodindo, é possível que aconteça alguma identificação em certos momentos. Quem nunca terminou uma amizade por conta de uma briga, cujas justificativas são fundamentadas? Ou uma amizade que terminou por conta da distância, em que a vida leva as pessoas para caminhos diferentes, desconectando as duas com naturalidade? E quando uma amizade termina, simplesmente pelo fato da outra parte não estar mais disposta, mas também não entrega nenhuma motivação para isso? Simplesmente não quer mais esta amizade em sua vida.
Quando alguém já passou por tais situações, é possível assistir Os Banshees de Inisherin com um olhar mais sentimental, enquanto o racional serve para analisar os detalhes externos, o que, de fato, contribui para o fim da amizade dos protagonistas.
Antes, não posso deixar de falar das ótimas atuações do elenco. Colin Farrell está excelente nas expressões e entrega um Pádraic gentil, reclamão, atencioso, carinhoso com quem ele gosta e extrovertido até demais para um lugar frio e recluso. Sua personalidade é moldada aos poucos não só quando o baque do término da amizade chacoalha seus sentimentos, na tentativa de entender o que se passa, como também lhe transforma em alguém que se encaixe melhor nesta ilha, afastando de quem ele realmente é.
Brendan Gleeson não fica para trás e está sensacional também como um Colm velho, pacato, mas que ainda deseja construir algo, deixar um legado marcante para ilha e para que lembrem quem ele é. Uma de suas paixões é a música, o que faz ele dedicar o tempo que lhe resta para compor músicas que, ironicamente, nunca escutamos inteiramente, e a rixa entre ele e Pádraic faz com que suas canções fiquem entrecortadas, sendo apenas citado de que uma música é finalizada, mas nunca tocada aqui. Aliás, é deste desejo que vem o nome do filme Os Banshees de Inisherin. Quem assistir ao filme, vai entender melhor.
Enquanto o fim da amizade pode ser analisado com uma perspectiva mais sentimental do espectador, cujas emoções afloram no decorrer da história, na qual é possível sentir compaixão, raiva, sufoco e tristeza, o lado racional leva o olhar do público diretamente para a ilha e seus moradores, o que nos dá uma visão de como esses detalhes também contribuem para o fim entre esses dois amigos.
Os Banshees de Inisherin tem como pano de fundo a Guerra Civil Irlandesa que, de fato, aconteceu de verdade, cuja tensão é sentida no outro lado do mar, como vemos na cena em que Pádraic observa as explosões e deseja sorte para quem estiver por lá.
Essa guerra nos leva a um pensamento improvisado de que a ilha Inisherin seja um local isolado, mas seguro, uma vez que está meramente distante do maior e pior caos que existe: a guerra. Mas esta é apenas uma ilusão e, conforme adentramos na ilha e conhecemos seus moradores, percebemos que este local não é tão bom, tem suas falhas e uma atmosfera que obriga que essas pessoas se tornem realmente parte desta ilha fria, crua e distante.
De fato, esses moradores são a alma da cidade, mas é a ilha que os molda, e quem estiver de fora e incomodado, que se mude. Certo? Para mim, Os Banshees de Inisherin deixa claro que este local, apesar de seguro e distante da guerra, tem os seus próprios pequenos conflitos que transformam as pessoas: a senhora do correio que abre as cartas da vizinhança à procura de novidades, por conta do imenso tédio (a falta de privacidade); o policial abusivo, cuja autoridade é desprezível tanto com quem mora quanto com o próprio filho Dominic, que sofre em suas mãos; a velhinha que representa metaforicamente a entidade que anuncia a próxima morte; os únicos lazeres deste local são o bar e a igreja que, aos poucos, são “infectados” por essa atmosfera crua; isso sem contar que o cenário em si é frio, nublado, triste, recluso, o que alimenta mais a distância e a solidão, mesmo com pequenas tentativas de diversão e socialização.
O longa mostra que Colm já estava enraizado ali, e para completar o processo, precisava encerrar a amizade, uma vez que Pádraic é o oposto do que esta ilha quer e oferece, na qual sua gentileza, carinho, alegria, falação são interpretadas como uma grande chatice. Pádraic irrita em alguns momentos sim, especialmente quando passa a não respeitar as decisões e o espaço de Colm, mas sua personalidade não é a culpada. É a ilha que não o quer mais assim. Para isso, o conflito entre eles se inicia, mas quem será que vai mudar no fim?
De exemplo, temos Siobhan, irmã de Pádraic, interpretado pela ótima atriz Kerry Condon, que não aguenta mais as brigas e nem a forma como as pessoas são e tratam umas as outras, o que a faz aceitar uma proposta de emprego e partir daquele local na qual não pertence mais. Sua alma não foi corrompida até o fim, como a ilha exigia.
Todo Dia a Mesma Noite: vale a pena assistir a série da Netflix?
O que era para ser a aceitação do fim de uma amizade, passa dos limites e se transforma em uma pequena guerra que gera consequências crescentes, irritantes e quase fatais, levando a decisões que causam indignação (Colm prefere falar com o policial abusivo do que com Pádraic? É sério?). O espectador até dá risada com a ameaça de Colm de cortar os próprios dedos, mas quando se torna realidade, o que era comédia vira tensão e uma possível tragédia à vista.
Considerações finais
A reta final ganha proporções maiores, em que um término de amizade não aceito culmina em um conflito na qual as motivações se tornam palpáveis para o fim entre dois amigos, na qual os moradores perdem, enquanto a ilha ganha mais uma alma.
Os Banshees de Inisherin retrata o fim de uma amizade e o mal que pode culminar quando o fim não é bem aceito. É um filme com um elenco muito bom, que desafia o espectador a enxergar e analisar tanto pelo lado sentimental e racional sobre algo abstrato que se torna palpável, real e transformador com a contribuição das forças e os detalhes externos. Um filme bonito, trágico e agridoce.
Ficha Técnica
Os Banshees de Inisherin
Direção: Martin McDonagh
Elenco: Colin Farrell, Brendan Gleeson, Kerry Condon, Barry Keoghan, Pat Shortt, Gary Lydon, Sheila Flitton, Bríd Ní Neachtain, Aaron Monaghan, Jon Kenny e David Pearse.
Duração: 1h54min
Nota: 4,0/5,0