A tragédia na boate Kiss, que matou 242 jovens e feriu 636 pessoas em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em 2013, ganhou a adaptação Todo Dia a Mesma Noite, nova minissérie da Netflix, baseada na obra Todo Dia a Mesma Noite: A História não Contada da Boate Kiss (2018) da jornalista e escritora Daniela Arbex. A produção traz um retrato ficcional da quinta maior tragédia da história do Brasil, que após 10 anos do acontecimento, a espera por justiça ainda continua. É uma série pesada e difícil, mas extremamente necessária de assistir.
Com direção geral de Julia Rezende, direção de Carol Minêm e roteiro de Gustavo Lipsztein, Todo Dia a Mesma Noite tem apenas cinco episódios, cuja duração é suficiente para tratar de uma tragédia lembrada até hoje. A narrativa se divide em dois momentos em que o espectador, mesmo em contato indireto, é mergulhado para onde tudo aconteceu, caminhando lado a lado com os personagens para acompanhar e observar os desdobramentos deste caso.
No geral, a minissérie exige emocional equilibrado, uma vez que a temática não é só real, como difícil e pesada de assistir, o que pode gerar gatilhos emocionais e psicológicos. Até para quem está bem, torna-se um momento angustiante devido à dor, ao luto e as grandes injustiças que ocorreram e ainda ocorrem desde daquela época. Assim, tenha cuidado ao assistir; mas também assista porque esta é uma história necessária e para nunca ser esquecida.
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Os dois primeiros episódios de Todo Dia a Mesma Noite são os mais tristes e desesperadores, na qual se inicia apresentando as famílias principais que o espectador irá seguir até o último minuto, mostrando que aquele era para ser apenas um dia comum e feliz na vida dessas pessoas, em que ora estavam comemorando um aniversário – como é o caso de Marianne; ora estavam querendo apenas curtir a noite ao lado dos amigos; ora estavam indo de encontro com amigos para matar as saudades que a distância deixava.
O que era para ser um dia comum, rotineiro e tranquilo, termina da pior maneira possível para diversas famílias. A série leva o espectador para dentro da boate, posicionando as pessoas, o dono, a banda a se apresentar e os inúmeros participantes, o que leva a casa a lotar com até 1000 pessoas para um local que não suporta tudo isso.
Toda a tensão e o desespero são instalados no instante em que o vocalista da banda usa um sinalizador durante o show e, consequentemente, coloca fogo no teto coberto por espuma – feito de um material inflamável e letalmente tóxico. A partir daí, os inúmeros erros são apresentados, fazendo com o que o público se sinta aflito por saber o que as vítimas passaram, e com extrema raiva pela forma como as ações e reações ocorreram.
Um dos pontos mais relevantes da série é a forma como trabalham os detalhes que fazem a total diferença para quem está assistindo, engatilhando vários tipos de emoções, justamente por saber que tudo isso que está sendo visto na tela realmente aconteceu.
De exemplo, temos a cena em que o baterista entra em desespero e grita várias vezes sobre o início do incêndio; o vocalista da banda não avisa (pelo microfone) que o local está pegando fogo; as pessoas percebem o fogo e, automaticamente, entram no modo de desespero e fuga (o que é normal), correndo diretamente para a porta principal e para os banheiros, em um local sem saídas de emergência e superlotado; a falta de bom senso e noção dos seguranças que não permitem e saída das pessoas com a exigência do pagamento das comandas, uma das cenas mais revoltantes logo no início; e todo o caos instalado na boate, em que vemos o fogo se alastrar, teto e paredes desmoronar, pessoas sendo pisoteadas, enquanto inalam a fumaça tóxica e veem suas peles derretidas pelo fogo; a covardia da banda ao fugir do local; a indignação com o dono da boate ao dizer que sua vida acabou, enquanto diversas vidas acabaram e da pior maneira possível.
A emoção e a dor ficam ainda mais fortes com a cidade sob o som de inúmeros telefones tocando, em que os pais despertam de seu sono com a pior notícia que poderiam ouvir, além do desespero e da negação ao ligar para os celulares de seus filhos, cujas ligações nunca foram atendidas.
É inevitável não se comover, ficar de luto e sentir o reflexo dessa dor assistindo a série, que mostra com tamanha nitidez o sofrimento e as inúmeras injustiças com esta tragédia.
Outro momento que é impossível não se emocionar é ver os pais – protagonistas da série – indo de encontro aos seus filhos, cuja atmosfera de expectativa se divide entre a pequena de chance de encontrar o filho ou filha sã e salvos; ou apenas encontrar o seu corpo. A cena dos pais de Marianne, Sil (Débora Lamm) e Pedro (Thelmo Fernandez) indo aos hospitais procurar pela filha, chegando ao fatídico momento em que eles decidem ir ao ginásio onde os corpos das vítimas estão, é uma das sequências mais dolorosas de acompanhar. Especialmente pelo fato de vermos Marianne ainda viva, mas passando muito mal, cujo contexto é explicado no decorrer dos episódios. O momento em que o pai reconhece o corpo por meio do tênis que deu de presente, é simplesmente dilacerante.
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Outra cena que não passa despercebido (jamais) é quando os pais Lívia e Ricardo, interpretados por Paulo Gorgulho e Raquel Karro, vão atrás do carro do filho no local, com a esperança de não encontrar o automóvel lá, o que indicaria que o rapaz não estava na boate. Mas infelizmente, o carro é encontrado. Já Meire (Bianca Byington) é a mãe que se encontra em negação, que vai apenas para ajudar o amigo, sem aceitar o fato de que seu filho estivesse no mesmo local. Mas ele estava e, novamente, temos mais uma família desmantelada com a perda trágica de um filho.
Todo Dia a Mesma Noite entrega momentos extremamente intensos e tensos, que vão aflorar ainda mais para aqueles que acompanharam a história real na época, como foi o meu caso e, com certeza, é o caso de muitas outras pessoas além das vítimas. Eu poderia falar de mais detalhes aqui, mas esta é uma série que vai tocar no consciente e no coração de cada espectador de uma forma diferente. Por isso é necessário assistir.
A partir do 3º episódio até o final, Todo Dia a Mesma Noite mostra ao público os desdobramentos pela busca da justiça, em que os policiais responsáveis, interpretados por Erom Cordeiro e Laila Zaid, reúnem pistas, testemunhas e depoimentos, enquanto os pais criam uma Associação de Pais de Santa Maria para clamar por uma justiça que faça, pelo menos, seus filhos e suas filhas descansarem em paz.
Mas assim como na vida real, o espectador se depara com um sistema judiciário brasileiro quebrado e cruel. As provas existem, os erros cometidos estão em evidência e os responsáveis foram apontados como réus, mas a justiça decide não enxergar o que está óbvio para todos, se apoiando em seguir o que está na lei. Uma lei bem falha, por sinal.
Novamente, o público se depara com cenas que até parecem de ficção de tão absurdas que são, mas que infelizmente foram e ainda são reais. De exemplo, temos a indignação dos pais em ver o Ministério Público fazer vista grossa apenas para encobrir os nomes de peso por trás dessa tragédia, enquanto jogam toda a culpa em outros; o processo que os responsáveis do Ministério Público iniciaram contra os pais, pelo simples fato deles terem ficado “ofendidos” e “magoados” pela abordagem radical com que as famílias das vítimas tomaram em busca da justiça todos têm por direito; a votação para os réus irem à júri popular e o pedido ser aceito, e depois, negado. É a lei, a justiça, o sistema, o Estado rindo na e da cara das pessoas que eles deveriam cuidar e proteger.
Paralelamente as injustiças, o espectador acompanha a perspectiva de dois sobreviventes da tragédia durante meses em que ficaram hospitalizados. A série mostra o passo a passo de ambos se reerguendo emocionalmente, fisicamente e psicologicamente, enquanto lidam com perda de amigos com quem estavam juntos na noite e confrontam aqueles que nem se quer deram apoio em um momento tão necessário, como vemos a Gabriela confrontar o amigo que lhe deu o convite da festa, mas nunca buscou saber como ela estava depois da tragédia. Culpa ou covardia?
Considerações finais
Por se tratar de um caso real, Todo Dia a Mesma Noite entrega um final triste e já conhecido pela maioria. A tragédia na boate Kiss em Santa Maria, que tirou a vida de 242 jovens e feriu 636 pessoas na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, completa 10 anos. Uma década de perda, dor e luto. Uma década de famílias em busca de uma justiça que até hoje não foi feita, e os responsáveis apontados seguem em liberdade até este momento.
Todo Dia a Mesma Noite mostra que tragédias como esta estão suscetíveis de acontecer, mas que podem e devem ser evitadas quando a justiça acontece. Quando os responsáveis por um mal como este não são condenados, quando locais indevidos e com inúmeras falhas de segurança e irregularidades recebem alvará para funcionar, mais vidas serão colocadas em risco.
“Que não se repita” é a frase que encerra a minissérie. Mas se a justiça não for feita, as chances de uma nova tragédia acontecer são altas. Todo Dia a Mesma Noite é uma série pesada, mas é extremamente necessária para fazer as pessoas não esquecerem do que aconteceu e não permitam que isso aconteça novamente.
Ficha Técnica
Todo Dia a Mesma Noite
Baseado no livro Todo Dia a Mesma Noite: A História não Contada da Boate Kiss
Direção: Julia Rezende e Carol Minêm
Elenco: Debora Lamm, Thelmo Fernandes, Paulo Gorgulho, Bianca Byington, Leonardo Medeiros, Raquel Karro, Bel Kowarick, Paola Antonini, Nicolas Vargas, Manu Morelli, Luan Vieira, Miguel Roncato e Sandro Aliprandini.
Duração: 5 episódios (45 minutos)
Nota: 4,5/5,0