Enquanto os filmes Corra! e Nós trouxeram críticas sociais com reviravoltas mais palpáveis apresentando o estilo do diretor, Jordan Peele retorna ao cinema com Não, Não Olhe! (Nope) que, apesar de abordar tais críticas, estas se encontram de forma mais subliminar em uma trama cujo desenvolvimento é mais fora da curva, que desafia a abrir um leque de interpretações sobre a história, na qual o plot twist fica em segundo plano, enquanto o público se importa mais com a resolução e como os personagens sairão desta situação.
Talvez Não! Não Olhe seja frustrante por esperarmos similaridades com os filmes anteriores, mas Peele surpreende ao trazer uma trama que mistura faroeste, terror e ficção científica em meio ao medo e humor, com personagens bem construídos que te conquistam pela personalidade, ação e reação diante do que é imposto. É um filme que exige tempo de digestão do que foi visto para, assim, chegar a uma conclusão contundente de gostar ou não. Para mim, o longa é diferente, peculiar e trabalhoso de interpretar, mas não deixou de ser interessante. Peele acerta novamente e vou te dizer o porquê.
******CONTÊM SPOILERS******
Qual é a história?
Não, Não Olhe! acompanha os irmãos OJ (Daniel Kaluuya) e Emerald (Keke Palmer) que cuidam da Haywood Hollywood Horses, um rancho localizado no interior da Califórnia e isolado da cidade, em que eles disponibilizam os cavalos para fazer comerciais, filmes, entre outras coisas, um negócio criado pelo pai que, agora, passa a ter os cuidados do filho mais velho, enquanto a irmã foca em sua carreira artística como cineasta, atriz ou roteirista, ou seja, aquela jovem multifuncional no ramo do audiovisual.
No entanto, coisas estranhas se iniciam neste rancho, a começar pela morte absurda do pai, atingido por objetos que caíram, aparentemente, de um avião. Meses depois, OJ testemunha o primeiro vislumbre de um objeto não identificado no céu, similar a um OVNI, com movimentos instantâneos, emergindo-se sorrateiramente de uma nuvem inerte enquanto a movimentação do ar é contínua, o que torna a situação assustadora. O terror inicia quando os irmãos Haywood decidem gravar o que supostamente consideram uma ‘nave extraterrestre’, mas quando eles descobrem o que realmente é, ambos percebem que são meros seres sendo observados por algo maior, territorial, visceral e, possivelmente, fatal à humanidade.
Com relação ao cenário, Não, Não Olhe! entrega uma ambientação vasta, abrangente e isolada, o que nos dá uma falsa sensação de segurança, afinal, os arredores são simples, uma vizinhança tranquila com direito a um parque para entreter. Mas este é o cenário perfeito para um mal maior vindo do céu se aproveitar do que há na parte terrestre, em que os personagens correm pela vastidão com poucos lugares para se esconder, o que desperta crescentemente a tensão tanto nos personagens quanto no espectador que observa as duas partes: o homem e o monstro.
Uma história, mil interpretações
Não se preocupe, o subtítulo desta crítica não precisa ser levado à sério! O longa não tem mil interpretações, mas há mais de uma ramificação desta trama que pode ser identificado, e o que eu vi e entendi, talvez, não tenha sido visto por você e vice-versa, o que torna a troca de ideias sobre a história mais rica e interessante.
Muito se fala nesta trama, especialmente pelas falas de OJ, que nem sempre o animal obedecerá, ou seja, nem todo animal aceitará ser treinado, dado à sua natureza de fazer o que a mente diz e o corpo executa, exemplificado pelos cavalos do rancho, mas principalmente pela subtrama de Jupe (Steven Yeun) ex-estrela de uma série cancelada e como o programa teve um desfecho trágico quando um chimpanzé, treinado para atuar, cedeu à sua natureza selvagem, tornando uma cena supostamente divertida em um grande massacre sangrento e visceral.
Um detalhe interessante é que a direção de Peele não permite que vejamos tal cena nua e crua, apenas momentos que alimentam a imaginação do público de forma assustadora. É deste jeito que Jupe, ainda criança, presencia todo o massacre e percebe as ações de um chimpanzé em um habitat que não faz parte. Aqui, podemos interpretar que, possivelmente, há certas coisas que não deveriam ser vistas, neste caso, não deveríamos ver este tipo de animal em um programa, preso em um cenário falso, treinado para falar e agir com e como o homem, sem ser a sua própria espécie. Para mim, o primeiro significado do título do filme vem deste plot.
O arco da história de Gordy (o chimpanzé) surge aleatoriamente e dividida, mas quando as peças se juntam, elas se conectam com o plot principal. A partir daqui a história nos dá o passo a passo subliminar do que realmente está acontecendo, o que há no céu e como os personagens podem sair desta situação.
Quando os personagens entendem que não se trata de uma nave extraterrestre e, sim, de um ser monstruoso que encontra a Terra, se apossa deste território e se alimenta dos seres que encontra, tudo começa a fazer sentido, especialmente com relação às regras de como tal monstro impõe os seus comandos. Novamente, temos outro significado do título Não, Não Olhe!, já que OJ finalmente compreende que o ser extraterrestre apenas devora aqueles que olham para cima, sugados por uma espécie de redemoinho que os levam diretamente para o ‘estômago’ em que a direção de Peele encaminha o olhar do espectador para testemunhar a digestão das vítimas, uma sequência claustrofóbica e de extrema angústia.
À medida que o monstro age e aterroriza, OJ tenta entender a forma como ele funciona, como o fato de sua aproximação deixar o território sem eletricidade (é por isso que os personagens correm ou andam a cavalo), dando o sinal de que está por perto, assim como a nuvem inerte que alerta a sua localização. Tal monstro se alimenta de seres, mas ingere tudo o que vê pela frente, o que o faz expelir tudo o que paralisa a entrada respiratória e digestiva, como vemos na excelente sequência da chuva sangrenta no rancho, com OJ preso no carro, enquanto Emerald e Angel ficam presos na casa. É neste momento também que o público compreende a razão para o pai dos irmãos ter morrido, já que foi atingido por algo que o monstro expeliu na fatídica ocasião.
Enquanto o caos aterrorizante é instalado, além de encontrar uma forma de sobreviver, os irmãos, junto com Angel, precisam gravar o tal ‘milagre ruim’, afinal, quem iria acreditar que um ser flutuante e sugador chegou na Terra, especificamente na Califórnia?
Novamente, a interpretação emerge das entrelinhas ao retratar que “uma imagem fala mais que mil palavras”. Neste caso, o significado desta frase faz muito sentido, no entanto, a história coloca os personagens em uma linha tênue de sobrevivência e a busca pelo ‘clique de milhões’, já que tal caso surreal pode garantir o sucesso e dinheiro que a família necessita. Como exemplo, há a cena tanto do repórter da TMZ e do documentarista que, praticamente, entregam suas vidas pela imagem perfeita. Enquanto assistem a tragédia acontecer, os protagonistas seguem em ritmo de sobrevivência na qual encontram a brecha perfeita para eliminar o mal e provar a todos o grande acontecimento.
Personagens
Além do roteiro bem escrito e a ótima ambientação com seus bons efeitos especiais, Não, Não Olhe! se engrandece pelo excelente elenco que entrega atuações dignas que te leva do riso ao desespero em segundos.
O ator Daniel Kaluuya jamais decepciona e entrega um OJ apático diante da turbulência que cresce na trama, cujas nuances aumentam quando o perigo chega ao ápice. Talvez a calmaria incomode, mas camufla o medo que lhe ajuda a raciocinar diante do mal acima de todos. Não é à toa que ele é o primeiro a entender como lidar com a criatura extraterrestre, se arriscando nos momentos certos, enquanto em outros ele opta por não dar um passo maior que a perna, como costumamos ver em filmes de terror que levam o personagem a um desfecho precocemente triste.
A atriz Keke Palmer está incrivelmente maravilhosa como Emerald, uma jovem cheia de energia que está sempre pronta a vender o seu talento para crescer profissionalmente. É o seu conhecimento em audiovisual que faz com que ela e o irmão tenham a façanha de registrar as movimentações e os ataques da criatura, garantindo alívios cômicos no timing perfeito que, logo, se mesclam aos momentos intensos e angustiantes. Tudo funciona com a atriz, desde a química com o elenco até os diálogos simples e formidáveis.
O ator Steven Yeun tem uma participação menor e importante, pois ajuda o público a interpretar as ações do homem diante de algo maior e indomável. Por ser a testemunha do massacre do chimpanzé, Jupe camufla as dores do passado com alegria e uma nostalgia que lhe dá lucro, mas não aprende com a tragédia assistida, resultando em um desfecho nada feliz. Quando você assistir, pode ser que interprete desta forma…ou não.
O elenco coadjuvante não fica para trás, com destaque para Brandon Perea como Angel, o rapaz da loja de eletrônicos que passa ajudar os irmãos a capturar as imagens da criatura, mergulhando neste caos; e Michael Wincott como o documentarista que, literalmente, se entrega de corpo e alma pela filmagem perfeita.
Considerações finais
O final é grandioso, barulhento e angustiante, levando para um caminho que tudo dará errado. Mas será que dá mesmo? Não, Não Olhe! é um filme que mistura faroeste, terror e ficção científica em um roteiro bem desenhado e interpretativo, em que a visão e discussão podem se modificar para cada espectador. Isso prova que não é um filme simples e qualquer, que te desafia a entender o que há por trás da proposta apresentada e performada por um ótimo elenco.
Não, Não Olhe! não é para ser visto de qualquer jeito. É uma história para digerir aos poucos e, se possível, ser assistida mais de uma vez.
Ficha Técnica
Não, Não Olhe!
Direção: Jordan Peele
Elenco: Daniel Kaluuya, Keke Palmer, Brandon Perea, Steven Yeun, Michael Wincott, Wrenn Schmidt, Keith David, Terry Notary, Barbie Ferreira, Jacob Kim, Sophia Coto e Devon Graye.
Duração: 2h10min
Nota: 3,9/5,0