Começo esta crítica dizendo que assisti A Mulher Rei (The Woman King) sem saber absolutamente nada, nem mesmo vi o trailer. E posso dizer que a experiência foi magnífica ao acompanhar uma trama real protagonizada por mulheres, feita por mulheres e para as mulheres, especificamente, uma produção realizada por mulheres negras que merece ser visto na maior tela possível. Viola Davis é a grande estrela deste recorte específico da história africana que não se resume somente à ação, indo além com o bom texto e a excelente performance do elenco sobre este drama. Vale a pena assistir e vou te dizer os motivos.
Com direção de Gina Prince-Bythewood e roteiro de Dana Stevens e Maria Bello, A Mulher Rei apresenta um recorte inspirado na real história das Amazonas do Reino Daomé, um reino africano que existiu entre os séculos XVII e XIX, onde atualmente é localizado o Benin (da África Ocidental). A trama acompanha Nanisca, uma comandante do exército de Daomé, composto apenas por mulheres. Conhecidas por Agojie, estas guerreiras lutam contra os colonizadores, tribos rivais e todos aqueles que escravizam o seu povo e de outras comunidades africanas, ameaçando destruir o que lhe resta.
O grupo Agojie foi criado por conta da população masculina enfrentar baixas por conta da violência e de guerras mais frequentes com os estados vizinhos, o que levou o reino a ser forçado a dar anualmente escravos, particularmente ao Império Oyo, que usou isso para troca de mercadorias como parte do crescente fenômeno do comércio de escravos na África Ocidental, o que fez com que mulheres fossem alistadas para o combate.
Quando digo que A Mulher Rei não se resume somente a um filme de ação, é porque as camadas desta história se aprofundam e retratam um ponto importantíssimo na qual o Brasil fez parte: a escravidão. O longa introduz este grupo guerrilheiro feminino extremamente potente, cuja origem vem de várias vertentes, enquanto a força cresce a partir de um processo de treinamento intensivo que prepara física e psicologicamente as futuras guerreiras.
É a partir daqui que acompanhamos as principais jornadas, sendo uma delas a de Nawi, cuja interpretação de Thuso Mbedu é excelente do início ao fim ao entregar uma jovem teimosa e impetuosa em busca da liberdade e independência. Ao fugir de um provável casamento tóxico (e futuramente violento), Nawi é entregue ao grupo pelo seu pai, como forma de repúdio e abandono por não servir ao seu destino: casar, procriar e obedecer ao marido.
Assim, A Mulher Rei traz todo o desenrolar de um roteiro bem construído, desde a formação de novas guerreiras e suas origens que a fizeram chegar ali, os dramas pessoais das personagens principais até as formidáveis sequências de luta, ataques e defesas das Agojie para proteger o seu território e acabar de vez com a escravidão.
O longa faz questão de mostrar o processo de compra e venda de pessoas das comunidades africanas por colonizadores franceses, portugueses e brasileiros, com destaque para os personagens Santo Ferreira e Malik, vividos por Hero Fiennes Tiffin e Jordan Bolger, na qual o espectador se depara com diálogos em português com sotaque carregado, revelando certo esforço dos atores em pronunciar cada palavra do idioma.
Enquanto o público acompanha este cenário de guerra contra o fim do trato de pessoas negras como mercadorias, e as mudanças dentro do Reino Daomé a partir das decisões do rei Ghezo (John Boyega) em lucrar com a venda de óleo de dendê e encerrar o círculo de vendas de escravos aos colonizadores, A Mulher Rei mergulha ainda mais em sua espiral para também retratar alguns pontos dramáticos de Nanisca, personagem pilar do filme.
Como sempre, Viola Davis está impecável em seu papel ao interpretar uma líder nata, orgulhosa, determinada e forte, cujos conflitos internos ditou e ainda dita os seus passos a impedindo de seguir os seus instintos em circunstâncias pontuais, como os diálogos entre ela e Amenza confirmam. É o passado traumatizante que torna Nanisca nesta figura respeitável e digna de ser seguida, mas que também a faz corrigir certos passos que foram erroneamente moldados por culpa de alguém que, um dia, lhe fez muito mal.
Mesmo Nanisca sendo a grande essência da trama, A Mulher Rei entrega outras personagens extremamente carismáticas que conquistam o olhar do espectador à primeira vista, como é o caso de Nawi, especialmente pela forma como lida inicialmente com o processo de se tornar uma guerreira. Ela cria um laço fraternal com Izogie, interpretada por Lashana Lynch, minha personagem favorita que, acredito eu, também será para muitos. Izogie transborda força, conhecimento e destreza em meio as ações e o afeto de ‘irmã’ e ‘co-líder’. É aquela personagem que dá gosto de acompanhar e você torce para que ela esteja presente na maior parte das cenas.
Já Sheila Atim entrega uma Amanza que jamais foge da luta, tem postura respeitada por todos, além de ser uma ótima conselheira e ouvinte, especialmente para Nanisca. Aliás, esta é outra dupla que dá gosto de ver sempre que possível.
Claro que A Mulher Rei se constrói a partir de uma história real mergulhando em dramas bem desenhados, em que a moldura ganha uma lapidação a partir da ação em sequências primordiais feitas com esforço e dedicação do elenco. As lutas são bem reais e pontualmente viscerais, principalmente nas abordagens contra os inimigos, cujo sangue não é derramado à toa. Aliás, os detalhes deste filme ficam ainda mais ricos ao retratar a cultura, os costumes, as danças, os figurinos e o idioma do Reino Daomé.
Outro ponto interessante a se saber é que a história real que inspirou A Mulher Rei também inspirou Pantera Negra (2018) ao retratar as guerreiras do reino Wakanda, conhecidas por ‘Dora Milaje’, que eram treinadas desde a infância para enfrentar as batalhas a favor de seu povo. Aliás, Viola Davis revelou em suas entrevistas, e também durante a sua vinda ao Brasil para a divulgação, que este filme levou seis anos para sair do papel, cuja chance foi alcançada graças ao sucesso do longa da Marvel – primeiro filme de heróis protagonizados por atores negros – que alavancou a possibilidade desta produção chegar ao cinema.
Considerações finais
A Mulher Rei traz uma história real, cuja vertente mostrada aqui é pouco conhecida e que desperta a curiosidade no espectador em querer saber mais sobre este ponto histórico. É filme que apresenta excelentes cenas de ação, mas que não se resume somente isso, pois o drama desenhado pelo ótimo roteiro prende a atenção do início ao fim com um elenco de ponta e um protagonismo impecável de Viola Davis.
Você é a favor da diversidade? Você gosta de filmes bons e bem feitos? Coloque isso em prática e assista A Mulher Rei no cinema. É um longa feito por mulheres talentosas de várias áreas da produção do audiovisual que entregam a adaptação de uma trama valiosa que merece ser conhecida por muitos.
Ficha Técnica
A Mulher Rei
Direção: Gina Prince-Bythewood
Elenco: Viola Davis, Thuso Mbedu, Lashana Lynch, Sheila Atim, Masali Baduza, Jayme Lawson, John Boyega, Hero Fiennes Tiffin, Jordan Bolger, Adrienne Warren, Jimmy Odukoya, Chioma Antoinette Umeala, Sivutyile Ngesi, Angélique Kidjo e Daniel Hadebe.
Duração: 2h15min
Nota: 4,0/5,0