Se tem algo que Ari Aster sabe fazer é chocar o público com suas histórias de terror nada comuns. A obviedade é uma palavra que não existe em seu vocabulário, e o diretor, novamente, retorna aos cinemas com Beau Tem Medo (Beau Is Afraid) para retratar um assunto simples de forma metafórica, insana e extravagante que irá sugar toda a sua energia…algo que pode ser bom ou ruim.
Beau Tem Medo é o mais novo terror psicológico na qual o diretor montará um triplex na cabeça de cada espectador. Não é um filme fácil de ser assistido, muito menos de ser digerido, mas é uma produção cuja experiência desafia os neurônios de cada um a refletir sobre as entrelinhas, mesmo que a mensagem em si tenha ficado claro. Não se preocupe, as interpretações são diferentes, sendo todas cabíveis diante do que foi visto. Não existe uma única verdade e é isso que faz este filme ser um ousado trabalho do diretor.
Beau Tem Medo acompanha Beau, um homem que mostra ter problemas de relacionamentos, personalidade e introspecção a partir da cena inicial em que vemos o personagem em sua rotineira sessão de terapia. Com a prescrição do médico em ter que tomar os seus remédios corretamente e com água (algo enfatizado pelo terapeuta), Beau inicia a sessão dizendo que irá visitar a mãe em breve, em comemoração ao aniversário da morte do pai.
Logo percebe-se que este é o maior conflito do protagonista e uma sucessão de contratempos, confusões e situações absurdas – que logo se tornam uma loucura infinita – fazem Beau iniciar uma odisseia para chegar até a casa da sua mãe, em que cada cena, momento e diálogo entregam uma peça do quebra-cabeça psicológico sobre a abordagem real por trás desta história.
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Beau Tem Medo é uma coletânea de situações que dá a sensação de que o espectador acompanha o protagonista em contos diferentes dentro de sua vida. A cada sequência o vemos posicionado em um momento improvável em que todos vão se conectando aos poucos.
O que torna este filme um terror psicológico é o fato de acompanharmos todo o desenvolvimento da história pelo olhar de Beau que, nitidamente, nos entrega uma visão eufórica e, muito possivelmente, deturpada sobre o que ocorre ao redor. Por ser uma trama aberta a interpretações, é normal desconfiarmos do olhar do protagonista. Mesmo que ele esteja relatando o que pensa e sente de verdade, a que ponto pode chegar o seu exagero? Tal questionamento surge, uma vez que o personagem é movido por seus variados medos, alimentando a sua irracionalidade.
Ao todo, vemos a jornada do protagonista se debruçar em culpas, medos e angústias a partir de um gatilho que o moldou (e ainda molda) e o tornou em um homem completamente inseguro de si. E qual seria este gatilho? Mesmo que a primeira parte do filme seja uma grande aglomeração insana situacional, que faz o público dar risada do absurdo que acompanha, é possível notar que o filme trata sobre o relacionamento maternal, o laço de mãe e filho, na qual a figura materna dá vida à sua cria, mas não a cria para o mundo e, sim, para si mesma.
Tal ideia começa a maturar no segundo ato, especificamente na longa sequência em Beau foge da casa onde estava e vai parar em um acampamento na qual assiste a uma peça de teatro. É nesta peça que mergulhamos no imaginativo do personagem, que se vê em uma vida liberta de angústias e do controle maternal, podendo caminhar sozinho, enquanto desenha sua jornada a partir de suas próprias escolhas, mesmo que isso acarrete em momentos bons e ruins.
Mas quando tais sentimentos invadem a sua mente de novo, isso faz Beau retornar à realidade na qual ele ainda precisa encarar estes medos que lhe sufocam. É do segundo ato até o final, que Beau Tem Medo faz a gente compreender com mais nitidez sobre as inseguranças do personagem alimentadas por uma mãe cujo amor em excesso o podou. Uma entre várias reflexões que podem ser feitas aqui, a mãe de Beau sempre usou de uma autoridade camuflada de amor para controlá-lo por dentro e por fora, seja nos seus pensamentos, sua personalidade, ações e reações.
Ari Aster consegue desenhar como esta figura materna controladora ‘corta’ a virilidade do filho, como na cena em que Beau não quer tomar banho, e ela o castiga colocando-o no sótão. Aquele monstro possivelmente trata-se de um grande pênis, mostrando que sua masculinidade ficara reclusa por tanto tempo, criando uma dependência de filho com mãe. De um jeito mais direto e cru, trata-se do cordão umbilical que não fora cortado. Aliás, a cena inicial do parto e o desespero misturado à preocupação da mãe pode ser um exemplo disso.
Toda esta extravagância alegórica é obra de Ari Aster, mas nada disso funciona sem a ótima atuação de Joaquin Phoenix que entrega insegurança, medo, culpa, euforia, insanidade, pouquíssimas doses de calmaria em meio a grandes surtos, tudo isso através do seu olhar perdido, sua voz esganiçada e falha em que as palavras tropeçam em diálogos espaçados e demorados, já que ele tem até medo do que vai sair da boca. E a sofrência de Beau é tamanha que chega a ser hilária em vários momentos. A sequência em que ele tenta entrar e sair de casa é sensacional, um mix de trágico e cômico na qual o público duvida se, de fato, o personagem realmente mora em um bairro caótico e perigoso (parece a Cracolândia de SP), ou se tudo não passa de uma visão irracional do protagonista, já que seu medo fala mais alto.
Os atores Amy Ryan e Nathan Lane também estão no elenco e protagonizam, ao lado de Phoenix, uma sequência que se conecta a jornada de Beau, mas também apresenta a problemática destes personagens. O casal é responsável por atropelar o protagonista, levando-o para casa para se recuperar. A forma como agem – como se Beau fosse um filho adotado, enquanto a filha mais nova do casal não aceita tal atitude – revela que eles também moram em uma bolha que a própria vida criou, mas que não conseguem sair: a dor do luto. Ao perder o filho na guerra, o casal segue sem aceitar a morte do primogênito, o que faz o público entender a forma como eles tratam o protagonista, enquanto adotam o parceiro que lutou ao lado do filho e, agora, sofre com sequelas psicológicas desencadeadas pelo trauma.
Se Beau Tem Medo faz o espectador mergulhar nesta jornada maluca, o terceiro ato apresenta um plot twist que confirma a mensagem principal da trama, mas também destrava mais interpretações nestas entrelinhas. No começo, descobrimos que a mãe de Beau, Mona Wassermann, morreu em decorrência de um trágico acidente na qual um lustre cai e decepa a sua cabeça. Mas quando finalmente Beau chega na casa da mãe, a fim de que o funeral aconteça, ele não só reencontra uma antiga paixão da infância, Elaine (Parker Poser) – cuja participação é curta por ser tragicômica – como também descobre que a mãe está viva e mentiu sobre sua morte para atraí-lo até ela.
A atriz Patti LuPone está incrível como Mona, uma mulher que enriqueceu por sua inteligência e audácia ao criar um grande negócio. Mais do que isso, é sua arte de manipulação emocional que faz a gente entender a dinâmica que ela tem com Beau, desencadeando os problemas psicológicos em torno da figura maternal que vimos até agora. No entanto, como vemos toda a história pela perspectiva do protagonista, até que ponto tudo isso é verdade? De fato, pode existir o peso de uma mãe controladora na vida de Beau, mas será que pode ser um grande exagero? Novamente, tais questionamentos são cabíveis, uma vez que o filme abre espaço para essas interpretações.
A última cena em que vemos Beau fugindo em um barco e entrando em uma gruta, cria-se uma espécie de julgamento emocional na qual Beau é acusado de ingratidão à mãe por ele ousar em fazer suas próprias escolhas. O afogamento de Beau, na minha opinião, é uma representação de toda a culpa e insegurança criada pelo controle maternal, na qual Beau se sufoca até o último minuto, sem se salvar por não conseguir se impor, muito menos fazer suas próprias escolhas.
Claro que Ari Aster monta uma grande alegoria para contar uma história cuja mensagem se torna simples quando configurada. No entanto, é um filme cuja duração de três horas apresenta muitas informações que exigem paciência e energia para absorver tudo o que está na tela, tornando-se cansativo em algumas ocasiões. Há cenas que poderiam facilmente ser cortadas e a história ter duas horas de duração, no máximo.
Considerações finais
Beau Tem Medo é um filme difícil de ser visto e digerido e, cada vez que for assistido, a perspectiva sobre a história pode mudar, uma vez que as entrelinhas entregam muitas frestas interpretativas. É um longa rico por desafiar o olhar e a reflexão do espectador, enquanto apreciamos ótimas atuações. Mas também é um filme cansativo por sugar a energia com tantas informações e cenas possivelmente descartáveis. Não é fácil de ver, por isso, dividirá opiniões. Mas é um filme a se recomendar, nem que seja para assistir uma única vez na vida.
Ficha Técnica
Beau Tem Medo
Direção: Ari Aster
Elenco: Joaquin Phoenix, Patti LuPone, Amy Ryan, Nathan Lane, Parker Posey, Armen Nahapetian, Kyle Rogers, Denis Ménochet, Zoe Lister-Jones, Julia Antonelli, Richard Kind, Hayley Squires, Bill Harder, Julian Richings, Alicia Rosario, Catherine Bérubé e James Cvetkovski.
Duração: 2h59min
Nota: 3,0/5,0