Você já ouviu falar sobre a nação indígena Osage dos Estados Unidos? Você sabia que eles foram alvos de crimes chocantes cometidos por homens brancos em nome do poder? Se não sabe disso, chegou a hora de conhecer esta história com Assassinos da Lua das Flores (Killers of the Flower Moon), novo filme de Martin Scorsese que, mais uma vez, acerta com maestria ao dar espaço e voz a uma comunidade em uma trama intrigante, revoltante, cruel e necessária de ser conhecida.
Esta produção precisa ser vista pela maioria, da forma como for, mas se for possível, assista no cinema para mergulhar em uma história de amor, traição, poder e sangue. Vale muito a pena assistir 3h26 minutos e vou te dizer o porquê.
Com direção do icônico Martin Scorsese, que roteiriza ao lado de Eric Roth, o filme é baseado no livro Assassinos da Lua das Flores: Petróleo, Morte e a Origem do FBI, do autor David Grann. O filme mostra como o petróleo trouxe fortuna para a nação indígena Osage, em Oklahoma nos anos 1920, e como essa riqueza imediatamente atraiu intrusos brancos que manipularam, extorquiram, roubaram e cometeram crimes brutais em série contra os povos nativos, que veio a ser conhecida como o “Reinado do Terror”.
É praticamente isso que o público precisa saber à primeira vista. Mas claro que a sinopse serve apenas para fisgar e ser a “entrada” para o espectador, deixando todos os elementos, desenvolvimento, elenco, atuações e desfecho como prato principal a ser servido ao público.
É importante ressaltar que o filme é longo sim (3h26min), mas por experiência digo que não senti o tempo passar, justamente por ter conseguido mergulhar na trama e ficar na expectativa de saber como o caso seria solucionado, se teria semelhanças a história real – sim, este filme é baseado em fatos – com um elenco em atuações excepcionais.
Apesar de ter uma atmosfera faroeste, o filme não pode ser rotulado apenas no gênero ‘western’, mas podemos dizer que é um thriller romântico que envolve poder, ganância, traição, sangue e, sim, amor, por mais improvável que pareça.
Outro ponto importante a ser destacado nesta crítica é que o filme sempre teve o principal objetivo de dar espaço e voz para destrinchar a história da nação Osage e o seu destino trágico ao cruzar com homens brancos e gananciosos que transformaram parte deste povo em rastro de sangue. Com isso, grande parte do longa é direcionado a mostrar quem é esta nação, quem são os personagens deste núcleo, a riqueza compartilhada pelos Osage e como eram vistos pela sociedade, atraindo um mal que não imaginaram que seria tão trágico, além da história de amor do casal protagonista e os verdadeiros arquitetos de todo o massacre.
Para trazer fidelidade à história, Martin Scorsese não só fez as filmagens em terras Osage, como também contou com a participação do povo originário na produção e o apoio de Geoffrey Standing Bear, chefe principal da comunidade Osage, além de utilizar o idioma da nação indígena no filme, ou seja, muitas vezes você verá os personagens conversando na língua Osage, cuja tradução e interpretação vem logo em seguida.
Claro que outro ponto a ser esperado em Assassinos da Lua das Flores é a investigação feita pela amadora FBI (não a chamo assim de forma pejorativa), pois a agência estava em início de carreira, na qual a resolução deste caso a colocou sob os holofotes, tornando-se o seu grande case de sucesso. No entanto, o foco do filme na investigação é reduzido, em que vemos a aparição do agente líder Tom White (Jesse Plemons) e os agentes coadjuvantes apenas no terceiro ato da história. Ou seja, é preciso ter paciência para esperar este plot que, por sinal, é bom justamente por causar um mix de emoções no público.
Como disse, boa parte de Assassinos da Lua das Flores é concentrada em contar a história da nação Osage e o mecanismo brutal dos homens brancos para arquitetar os assassinatos em série. No entanto, chega um momento em que o espectador já está ciente do que está acontecendo, como o crime está sendo desenhado e os possíveis responsáveis pelo massacre. Isso faz cogitar a necessidade do filme durar mais de três horas, uma vez que era possível descartar algumas cenas. Ainda assim, o espectador se sente envolvido com a trama que, no fim das contas, não soa cansativa. Martin Scorsese sabe o que está fazendo, juntamente com as atuações ilustres.
Amor, traição e sangue
Assassinos da Lua das Flores desenha a história da nação Osage por meio da família de Mollie, que viu as quatro irmãs morrerem de forma trágica enquanto a mãe partiu com o tempo e a velhice. Tanto esta família como os Osage, no geral, viviam menos por problemas de saúde, como pressão alta ou diabetes, doença que acomete Mollie. Ressalto este ponto, pois tal informação era usada como gatilho e “desculpa” para algumas mortes dos Osage.
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Os crimes vistos no filme são desenhados brutalmente, seja um tiro diretamente na cabeça, envenenamento, acidentes e explosões premeditadas. Aliás, há algumas cenas que se tornam até gráficas como o momento em que Mollie reconhece o corpo de uma das irmãs e a forma como os médicos tratam o corpo com requinte de frieza e crueldade, em que a verdade nua e crua, mais tarde, deixa o espectador ciente e enojado sobre o motivo desta cena ter ocorrido.
E em meio a esta série de assassinatos que acontece de forma crescente, o público acompanha o romance de Mollie e Ernest, cujo casamento acontece a fim de unir as famílias e, é claro, as riquezas, uma vez que William Hale (tio de Ernest) somente enxergava e pensava em dinheiro. Por que não unir o útil ao agradável?
No entanto, Assassinos da Lua das Flores também emoldura uma história de amor em que é possível até ver uma luz no fim do túnel, na qual Mollie e Ernest conseguem formar uma família, compartilhar do amor que um sente pelo outro, cientes de quem são. Aliás, Mollie sabe exatamente com quem casou, pois desde o início ela deixa sua visão nítida sobre Ernest.
A atriz Lily Gladstone está fenomenal no papel e entrega uma Mollie inteligente, cuja tragédia que acomete toda a sua família a enfraquece, deixando-a doente e a mercê do perigo, sobrevivendo quando a ajuda de fora chega a tempo para resgatá-la. Talvez o espectador fique consternado e indignado com a tamanha resiliência da personagem, mesmo depois de descobrir toda a verdade. Mas é possível entender que, no fim das contas, Mollie não tem mais resistência e só deseja paz para a vida que lhe resta e um ponto final para o destino tão trágico de sua família.
A ganância e obsessão por dinheiro e poder também envolvem Ernest, que sempre acata as ordens do tio, mas também enfia os pés pelas mãos quando toma as próprias e estúpidas decisões.
Leonardo DiCaprio entrega uma atuação impecável (achei melhor que em O Regresso) e nos apresenta um homem bronco, preguiçoso e burro. Mas essas características ora são orgânicas, ora propositais, especialmente quando o personagem se sente encurralado em determinadas situações. É possível perceber que o ator modifica a expressão facial (deixa o queixo para frente e a boca torta) ao tentar se posicionar como um homem ignorante, desentendido e “inocente” quando o cerco se fecha.
A química de Gladstone e DiCaprio é boa e funcional ao desenhar um romance trágico e repleto de sentimentos, em que é possível sentir raiva, compaixão, ternura, ódio e esperança, até que as opções se esgotam quando a verdade vem à tona, restando apenas desprezo, desconforto, pena e perseverança em seguir em frente.
Quem não fica para trás também é o ator Robert De Niro como William Hale, um homem renomado, conhecido e respeitado na cidade. Conselheiro do xerife do local, Hale é também visto como um pilar aos Osage que o enxergam como amigo e grande apoiador da comunidade. O personagem ganha uma camuflagem robusta, que se desintegra aos poucos quando suas atitudes e ações são expostas, seja por um comando, uma frase, postura e o excesso de hipocrisia, falsidade e mau caratismo.
Mesmo deixando claro as qualidades disfuncionais de seus personagens, Robert De Niro e Leonardo DiCaprio esbanjam carisma que se divide entre dar risada com diálogos debochados e uma dose de humor ácido e nutrir desprezo por ambos até o último minuto.
Investigação e resolução
Assassinos da Lua das Flores introduz o FBI apenas na reta final – que ainda perdura por mais de uma hora – em que os agentes e o líder que comanda a investigação apenas aparecem quando os Osage chegam ao limite e gritam por socorro à Casa Branca.
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Claro que esta ajuda não é espontânea e a investigação vem de forma rasteira e às margens em uma abordagem singela a fim de atingir as pessoas certas que possam revelar a verdade. Talvez você espere por mais ação, perseguição e mistério, mas não crie expectativas, pois não é dessa forma que Scorsese desenha a resolução.
A reta final é um caos judicial em que vemos o caso discorrer no tribunal com Brendan Fraser encarnando um advogado de defesa barulhento, enquanto John Lithgow é o promotor da acusação mais calmo e incisivo em busca da justiça.
O veredito é dado em um formato de apresentação de podcast ao vivo e com direito a orquestra e plateia, uma sequência fenomenal que entrega os desfechos dos personagens e, é claro, da trágica história da nação Osage, com a participação de Scorsese em uma rápida e ótima aparição.
Qual é a verdade? Quem são os responsáveis por este massacre? Bom, caso ainda não saiba sobre a trama real, assista Assassinos da Lua das Flores, um filme cru, genial, romântico e trágico de uma história brutal, até então desconhecida pela maioria.
Ficha Técnica
Assassinos da Lua das Flores
Baseado no livro Assassinos da Lua das Flores: Petróleo, Morte e a Origem do FBI, do autor David Grann
Direção: Martin Scorsese
Elenco: Leonardo DiCaprio, Lily Gladstone, Robert DeNiro, Jesse Plemons, Tantoo Cardinal, John Lithgow, Brendan Fraser, Cara Jade Myers, Janae Collins, Jillian Dion, William Belleau, Jason Isbell, Louis Cancelmi, Scott Sheperd, Yancey Red Corn, Tantanka Means, Everett Waller e Talee Redcorn.
Duração: 3h26min
Nota: 4,8/5,0