Mais uma adaptação das obras de Agatha Christie chega ao cinema. A Noite das Bruxas (A Haunting in Venice) apresenta uma trama de investigação imersa em uma atmosfera sobrenatural interessante, com ótimo elenco e produção. No entanto, o desenvolvimento da história tem seus pontos altos e baixos, o que deixará os sentimentos divididos.
Mas não se pode negar que esta adaptação passa longe do livro ao entregar uma trama completamente diferente, utilizando apenas alguns nomes dos personagens e pequenas referências da obra original. No fim das contas, temos duas histórias distintas, cabendo a cada um escolher qual se encaixa melhor em sua preferência.
Com direção de Kenneth Branagh – que também dá vida ao detetive protagonista – A Noite das Bruxas se passa em Veneza no pós-Segunda Guerra Mundial e acompanha o famoso Hercule Poirot que, agora, está aposentado e vive em um exílio autoimposto na cidade mais glamurosa da Itália.
Auxiliado por seu assistente e segurança, Portfoglio, Poirot dificilmente aceita novos casos para investigar. Mas, um dia, ele recebe a ilustre visita da antiga amiga Ariadne Oliver (Tina Fey), autora de sucesso de romances policiais. Ela o intima para participar de uma sessão espírita em um decadente casarão assombrado, na qual há uma festa de Halloween para as crianças da cidade organizada pela anfitriã Rowena Drake.
Ao chegar lá, o detetive se depara com Joyce Reynolds (Michelle Yeoh), uma médium bem requisitada e famosa por suas leituras e alta sensibilidade em falar com os mortos. Claro que o ceticismo e o lado ávido por fatos e explicações científicas de Poirot batem de frente com a Sra. Reynolds, que o desafia a abrir a mente e entender o que se passa além do mundo dos vivos.
Mas quando a sessão se inicia, coisas estranhas acontecem, entre elas, discussões, primeiras descobertas e muita desconfiança. Inesperadamente, Joyce é assassinada, fazendo Hercule Poirot voltar à ativa e mergulhar em um mundo de sombras e segredos para saber quem é o verdadeiro culpado.
A Noite das Bruxas inicia apresentando os personagens para estruturar o mistério e, assim, abrir a narrativa para desenvolver a investigação e como cada suspeito pode estar conectado a esta situação. Aqui vemos a amizade de longa data e intimidade de Ariadne e Poirot, única pessoa que fez com que o detetive aceitasse uma proposta que ele recusaria facilmente de outra pessoa.
Há os personagens que formam o núcleo da casa assombrada como a Rowena Drake (Kelly Reilly) e sua dor pela perda da filha Alicia Drake (Rowan Robinson); o ex-noivo de Alicia, Max (Kyle Allen), na qual sentimos um grande atrito entre genro e sogra; a governanta da casa, Olga Seminoff (Camille Cottin), que acredita que não se deve mexer com o mundo dos mortos; e o médico Dr. Ferrier (Jamie Dornan), que cuidou de Alicia até o último minuto e, atualmente, se encontra mentalmente perturbado pelo que viveu na guerra e com a perda da garota. Ele conta com a ajuda do filho, o pequeno Leopold (Jude Hill), que, mesmo sendo uma criança, é sensato e racional, ao mesmo tempo que sente que há presenças na casa.
Para a sessão espírita, o filme apresenta Joyce Reynolds, uma mulher que divide opiniões pelo seu talento em falar com os mortos, e seus assistentes Desdemona (Emma Laird) e Nicholas (Ali Khan).
A partir daqui, quando a investigação se inicia, A Noite das Bruxas abre portas para que a história mergulhe em um clima sobrenatural, em que vemos o próprio detetive Hercule Poirot sendo desafiado a ver e acreditar em fantasmas dentro da casa, seja por risadas que ecoam pelos corredores, objetos em lugares diferentes, barulhos estrondosos misturados com a chuva torrencial em uma Veneza sombria e fria, passos de alguém correndo e, é claro, uma presença constante pela casa. De fato, a casa é realmente assombrada? Ou tudo não passa de uma farsa para encobrir o assassinato?
A ideia de injetar o sobrenatural em uma história de investigação a lá Agatha Christie é um recurso bem utilizado e bem feito no filme, deixando os segredos em evidência, criando um medo relativo ao espectador e uma tensão concentrada sob o mistério. Além disso, a produção de A Noite das Bruxas é satisfatória ao entregar ambientações com um glamour sombrio, na qual personagem e espectador podem desconfiar de qualquer parte do cenário principal, imaginando que algum objeto poderá se mover ou alguém surgir repentinamente.
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Em contrapartida, há três pontos que afetam o desenvolvimento da história, mesmo com esta roupagem fantasmagórica. A primeira é que a investigação ganha um ritmo lento, a ponto de perder um pouco da atenção do público especialmente no segundo ato do filme; Em segundo é que, quem for leitor ávido de Agatha Christie ou consumir muitas tramas de investigação, vai captar com mais facilidade pistas deixadas no decorrer da história, seja uma imagem, uma frase, a ausência ou presença de uma personagem em determinada cena. Assim, chegará à conclusão antes mesmo de Poirot fazer o seu grande discurso de descoberta sobre o assassino e a ligação dos pontos.
Em terceiro lugar, estão os personagens. Mesmo tendo um elenco muito bom e atuações satisfatórias, o filme não faz com que o público crie uma ligação forte com algum deles ao ponto de se importar tanto. Você quer saber quem é culpado e inocente, isso é fato, mas não se cria um laço sentimental com estes personagens, o que daria um toque especial à história.
Além disso, por termos muitos personagens – o que é normal nas histórias de Agatha Christie e eu gosto – há aqueles que se fossem descartados de A Noite das Bruxas não fariam diferença, como é o caso dos assistentes de Joyce Reynolds, que servem apenas para causar certo rebuliço por instantes. Particularmente, não me importei com eles.
Já os demais, sabem segurar a atenção, mas não cria-se aquela atmosfera de desconfiança em cima deles, em que matutamos para saber quem é o verdadeiro culpado. Olga, Max e Portfoglio são personagens secundários que amparam a história. Ferrier é um personagem que tinha um potencial a ser mais explorado, afinal, temos um médico cuja perturbação poderia inflar positivamente a história. Ele é OK, mas poderia ser melhor.
Leopold, Rowena e Joyce estão em um patamar acima, personagens que sabem chamar a atenção no timing certo. Acima deles estão Hercule Poirot e Ariadne Oliver, que são a base principal da história, aqueles que trilham a investigação, ao mesmo tempo que inflam o mistério, já que são jogados para dento do sobrenatural desafiando tanto o lado cético do detetive quanto o lado ávido de uma autora à procura de uma nova e boa história.
Filme vs Livro
Como disse, A Noite das Bruxas traz uma história completamente diferente do livro. Nem diria que é uma adaptação, justamente por ser uma nova história, utilizando apenas de alguns nomes dos personagens e leves referências da obra original. No mais, temos duas tramas a serem desfrutadas.
Para matar a curiosidade, o livro A Noite das Bruxas se passa em Londres. Durante uma festa de Halloween organizada por Rowena Drake para crianças e pré-adolescentes, a jovem Joyce Reynolds, de 13 anos, é conhecida por ter o costume de mentir para a chamar a atenção. Na festa, ela revela ter testemunhado um assassinato, chamando a atenção da autora Ariadne Oliver, convidada da noite. Ninguém acredita nela, mas, horas depois, o corpo de Joyce é encontrado afogado próximo a uma bacia cheia de maçãs. Diante de um caso tão tenebroso, Ariadne Oliver decide pedir ajuda para a única pessoa que considera capaz de encontrar o culpado: Hercule Poirot.
Bom, a partir desta sinopse e somente com o trailer do filme, nota-se a diferença gritante. À princípio, até acreditei ter lido o livro errado, mas depois confirmei que a adaptação, de fato, seria diferente.
Posso dizer que ambas produções funcionam dentro de suas estruturas escolhidas – filme e livro – mas a história original consegue criar uma narrativa espiral muito mais instigante, intrigante e que faz o leitor ficar na dúvida aonde a autora quer chegar, surpreendendo-se como tudo se conecta com perfeição.
******CONTÊM SPOILERS******
Final explicado
Sem muitas delongas, em A Noite das Bruxas descobrimos que a sessão espírita é para falar com Alicia Drake, filha de Rowena, que faleceu após ser encontrada afogada. A princípio, tudo levava a crer a um suicídio por conta da saúde mental que definhou a partir de alucinações que a garota passou a ter ao retornar para casa da mãe quando o noivado com Max terminou.
No entanto, Poirot logo descobre que trata-se de um homicídio e que a sessão espírita é uma armação de Ariadne, Portfoglio e Joyce para levá-lo até o local por três razões: Ariadne quer escrever uma história sobre a médium; Portfoglio quer descobrir o que realmente aconteceu com Alicia, uma vez que fora o policial responsável pela investigação na época, o que o levou a se afastar da carreira; Joyce aproveita da situação e do seu dom para ganhar dinheiro e, também, para ajudar seus assistentes que desejam ir embora para Missouri, nos EUA.
Neste meio tempo, outra morte acontece: Ferrier é morto dentro de uma sala na qual descansava após uma crise. Mas o local havia sido trancado com a chave sob a posse do detetive.
Entre discussões, mentiras, assombrações e armações, Hercule Poirot faz o seu grande discurso que, por sinal, é uma cena bem feita e gostosa de assistir, revelando toda a verdade. Para começar, as visões, os sons e alucinações que sentiu, viu e ouviu dentro da casa eram efeitos do chá envenenado que tomou, a fim de afastá-lo da verdade.
Quem o envenenou foi Rowena Drake, a culpada pelos três assassinatos. Rowena nunca aceitou que a filha Alicia pudesse ter sua própria vida, independência e família. Ela nunca aceitou o noivado e, quando Max termina tudo, Alicia retorna magoada para os braços da mãe, que vê a grande chance de ter o controle total sob a filha. Ela passa a envenenar Alicia com um suposto “mel” que a fez ter visões e alucinações, acreditando que estaria com alguma doença mental. Acidentalmente, Olga (sem saber do veneno) dá o chá com alta dose do “mel”, levando Alicia à morte por overdose. Ao ver a filha morta, Rowena simula a morte, marca as costas da menina e joga o corpo no rio de Veneza.
Na sessão espírita, Joyce chega a revelar as pistas sobre a morte de Alicia, cujo espírito retorna para apontar o verdadeiro culpado. Com medo de ser descoberta e perder dinheiro para a médium, Rowena mata Joyce. Ela também é a responsável por tentar afogar Poirot na bacia de água com maçãs, típica brincadeira feitas em festas de crianças.
Ao começar a ser chantageada por cartas, Rowena acredita que Ferrier descobriu sobre o envenenamento. Ao ficar trancado no quarto para descansar, ela liga para o médico e diz que sabe de tudo, e que se ele não se matar, ela matará o filho dele, Leopold. Assim, Ferrier comete suicídio.
Mas a verdade é quem estava chantageando era Leopold, pois foi o garoto quem descobriu sobre o envenenamento. Assim, para ajudar o pai, que já não estava mais em condições de atuar como médico, fez a chantagem para ter dinheiro para apenas pagar as contas, sem imaginar na tragédia que aconteceria.
Ao ser descoberta, Rowena tenta escapar, mas acaba caindo do alto da sacada da casa e morre afogada. Alicia aparece, levando sua alma para as profundezas da água, como justiça pelo que a mãe fez com a própria filha.
Ariadne e Hercule Poirot encerram a investigação e se distanciam, já que Ariadne enganou Poirot. Depois de ver o seu lado cético ser testado e, de fato, ter enxergado o fantasma de Alicia, o detetive decide voltar à ativa e pegar novos casos para investigar.
Considerações finais
A Noite das Bruxas é um filme com boa produção e elenco e uma história com altos e baixos. A atmosfera sobrenatural eleva o mistério, mas a investigação em si ganha um ritmo lento que pode perder a atenção do público, enquanto pistas podem elevar o grau de previsibilidade para olhares mais atentos.
Mesmo sendo uma adaptação, as duas obras apresentam histórias bem distintas, levando ao público escolher se gosta de apenas um ou dos dois. Entre filme e livro, a história original me agrada muito mais.
Ficha Técnica
A Noite das Bruxas
Direção: Kenneth Branagh
Elenco: Kenneth Branagh, Tina Fey, Kyle Allen, Camille Cottin, Jamie Dornan, Jude Hill, Ali Khan, Emma Laird, Kelly Reilly, Riccardo Scamarcio e Michelle Yeoh.
Duração: 1h43min
Nota: 3,0/5,0