Quem gosta do gênero true crime (crime real), precisa dar uma chance ao filme A Garota da Vez (Woman of the Hour), em que Anna Kendrick não só estrela, mas também estreia na cadeira de direção e com o pé direito.
Pelo olhar da diretora, o público se depara com uma história bizarra, porém real, seguindo uma linha tênue entre o medo e a confiança o que desperta angústia, tensão e raiva diante de cenas que impulsionam tais sentimentos. Não é um filme 100% perfeito, mas prende a atenção especialmente para saber como será o desfecho. Vale a pena assistir e vou te dizer o porquê.
Com direção de Anna Kendrick e roteiro de Ian McDonald, A Garota da Vez é baseado na bizarra história real de Rodney Alcala, um serial killer que ficou famoso nos anos 1970 ao participar de um programa de TV de namoro nos Estados Unidos, sem que ninguém desconfiasse da figura que participava como um dos candidatos a possível namorado da pretendente da vez.
A trama acompanha Sheryl Bradshaw, que se muda para Los Angeles para ter maiores oportunidades como atriz. Entre telefonemas, testes e muitas conversas, Sheryl vê seu sonho não engrenar da forma como imaginava.
Mas, um dia, Sheryl recebe a proposta e decide aceitar participar de um programa de TV de namoro, o conhecido ‘The Dating Game’, a fim de deixar a sua imagem popular aos olhos do público, de produtores e contratantes para alavancar de vez a sua carreira.
E durante o programa, Sheryl participa de um jogo de perguntas e respostas para avaliar os três candidatos ao seu coração. No entanto, quem chama a atenção é o terceiro candidato, Rodney Alcala, o mais charmoso dos três, aquele quem tem a resposta certa e perfeita que uma mulher gostaria de ouvir, o colocando como a escolha perfeita para ganhar o programa. Porém, o que ninguém imaginava é que o currículo de Rodney era preenchido por uma série de assassinatos, em que as vítimas são mulheres.
O primeiro diferencial de A Garota da Vez é a estrutura da narrativa que, talvez, incomode um pouco o espectador conforme a montagem vai apresentando os fatos que já ocorreram, enquanto intercala com o que está acontecendo no presente.
Ao longo dos anos 1970, com datas específicas, o público se depara com as vítimas que caíram na lábia de Rodney Alcala. Intitulado fotógrafo, com formação em Artes e Cinema, ele atraía suas vítimas com uma boa conversa e convites para ensaios fotográficos, dizendo à vítima ser a ‘modelo ideal’ com futuro promissor nesta carreira.
Para Rodney, seu modus operandi sempre envolvia a fotografia, seguindo de acordo com sua impulsividade com a reação de cada vítima. Ou seja, o público assiste o serial killer aplicar o seu padrão organizado em cenários diferentes: há a vítima que aceita fazer um ensaio fotográfico em um ambiente deserto, longe de absolutamente tudo, ideal para o assassino; a vítima que pede ajuda ao conhecido da rua para lhe ajudar na mudança; o colega de trabalho em uma redação de jornal que se vê encantado e desconfiado com o trabalho do fotógrafo; a vítima que se encanta com a promessa de se tornar uma modelo de sucesso, entre outros.
Enquanto o público acompanha as mortes cometidas por Rodney Alcala, a narrativa sempre nos leva de volta ao presente para destrinchar o que está acontecendo no momento, no caso, o programa de namoro que colocará Sheryl como a possível nova vítima do serial killer.
Em alguns momentos, a montagem causa desconforto por ser um pouco picotada, indo e vindo entre passado e presente, com datas específicas que, talvez, o espectador não se recorde mais a frente, o que é normal. Mas, ainda que cause um pouco de incômodo, não prejudica no desenvolvimento da história que cresce e se sustenta em uma ótima atmosfera de tensão.
Outro ponto positivo de A Garota da Vez é que Anna Kendrick reflete muito bem o olhar feminino diante destas situações, uma vez que a mulher é quem mais corre este risco. A diretora consegue criar uma linha tênue entre a confiança e o medo, que caminham paralelamente em circunstâncias simples, sem imaginar que o perigo está tão perto. E isso alimenta uma atmosfera de pavor sobre o que pode acontecer nos próximos segundos.
Particularmente, o público feminino é quem conseguirá sentir este temor com mais força ao assistir ao filme, afinal, é este público quem passou e ainda passa por situações semelhantes, especialmente se estiver sozinha, uma vez que precisa aplicar o benefício da confiança para ter ou conseguir algo. Ora, às vezes a inocência fala mais alto, faltando malícia e astúcia. Ora, o medo grita, fazendo a mulher reagir mais rápido para sair de tal situação periculosa.
De exemplo, há a primeira sequência em que a vítima vai a um local deserto para uma sessão de fotos, colocando toda a sua confiança nas mãos do serial killer, que usa deste benefício que lhe dá poder e controle sobre ela, para dar continuidade ao que, de fato, ele quer fazer, além de tirar fotos.
Outro momento que, talvez, o público julgue (eu me peguei julgando), é quando outra vítima pede ajuda ao assassino (que já havia se apresentado e com outro nome) para levar os móveis no apartamento, já que ela está de mudança. Você chamaria uma pessoa estranha da rua para lhe ajudar e, ainda, entrar na sua casa? São nestes pontos que vemos como o filme trabalha bem esta briga entre confiança vs medo.
Aliás, na década de 70, era normal ter uma confiança tão fácil em uma pessoa cujo contato ainda é pouco? É possível questionar isso durante o filme, afinal, aquela época não se compara ao atual em que temos uma avalanche de informações sobre segurança e proteção, especialmente à mulher.
Crítica – Coringa: Delírio a Dois
O medo se dissipa da vítima instantaneamente quando Rodney vira a chave colocando-o em um pedestal de poder, mesmo que a ambientação não seja sua. Pode ser o cenário mais vasto ou apertado, pertencente a outro, o assassino o toma para si rapidamente, colocando seu controle e poder de forma impulsiva, mesmo que se arrependa logo em seguida.
O ator Daniel Zovatto surpreende como Rodney Alcala. Inicialmente, ele apresenta um lado amigável, charmoso, envolvente e até inocente. A virada de chave do personagem é um impulsivo gradual, em que ele consegue levar uma conversa amigável para o lado sombrio e extremamente incômodo, adicionado à sua mudança brusca nas expressões faciais e o contato físico brusco e forte para machucar e matar. O toque final é o registro da imagem da vítima que irá para o seu álbum de fotos que, inclusive, ele faz questão de não esconder.
Anna Kendrick está ótima na frente e atrás das câmeras. Ela dá vida a Sheryl que luta para ter a oportunidade que abrirá as portas de vez à sua carreira de atriz. Mesmo relutante em participar de um programa cuja exposição é exagerada, ela aceita apenas com foco no seu trabalho, sem pretensão nenhuma de conseguir um namorado, e a personagem deixa bem claro o filme todo.
Há um desconforto no programa com perguntas tolas, superficiais e pejorativas que rebaixam a figura da mulher, o que faz Sheryl tornar o programa interessante ao mudar radicalmente as perguntas, entregando o prato cheio para Rodney Alcala conquistá-la, enquanto os outros candidatos ganham a imagem de babacas (e são), criando uma desconfiança temerosa destes sobre o terceiro candidato. Há uma cena em específico que mostra isso.
Há dois momentos entre Rodney e Sheryl que, sem dúvida, podem ser as cenas favoritas de muitos, especialmente por conseguir descrever o sentimento de medo e insegurança da mulher diante do desconhecido perigoso.
A cena do jantar é o exemplo da crescente mudança brusca de Rodney diante de Sheryl colocando-a em uma situação incômoda como se ela tivesse falado ou feito algo de erado, o que não é o caso. Já a cena do estacionamento é temerosamente incrível, pois cria-se uma tensão gigantesca sobre o que pode acontecer: Sheryl é a próxima vítima ou não? Os passos curtos e rápidos, a respiração ofegante e a perseguição no cenário até chegar no carro faz o público (especialmente o feminino) sentir na pele exatamente o que a protagonista está sentindo, provando o que muitas mulheres já passaram e ainda passam nos dias de hoje.
Outro destaque do elenco é a Amy (Autumn Best), uma das vítimas sobreviventes de Rodney Alcala. A forma como ela conduz a situação depois do pior acontecer é de forma magistral, já que seu único intuito é sair viva. Ela diz as palavras certas e exatamente o que Rodney quer ouvir, o que lhe dá a chance de escapar no momento certo e, assim, chamar a polícia.
Em contrapartida, A Garota da Vez entrega um plot que, na minha opinião, fica superficial. A personagem Laura (Nicolette Robinson) – que está na plateia – é a primeira a reconhecer Rodney Alcala no programa de namoro, já que a melhor amiga dela foi vítima dele.
Ela tenta denunciá-lo tanto com a produção do programa quanto com a polícia. No entanto, estes dois momentos ficam a desejar, pois a personagem não consegue dialogar claramente para fazer a denúncia, o que deixa o espectador dividido. Seria uma forma do filme em retratar o medo da denúncia e não ter a credibilidade de suas palavras diante das autoridades? Ter a sua voz não ouvida por ser mulher? Se esta for a intenção do filme, é um bom acerto. Mas se não foi, é um plot dispensável à história.
Considerações finais
A Garota da Vez acerta não só em apresentar uma história bizarra de um serial killer, mas também o retrato incômodo sobre medo, segurança e confiança pelo ponto de vista feminino, em que Anna Kendrick expõe tais sentimentos com força na tela, que podem ser sentidos pelo público, especialmente pelas mulheres, cujo desconforto será maior.
Talvez a montagem incomode alguns, mas não prejudica totalmente a história, ressaltando a necessidade em alertar à falta de segurança de ir e vir que mulheres sentem no dia a dia, sendo um direito delas.
História real de Rodney Alcala
Rodney Alcala se mudou com a família para o México, mas aos oito anos, seu pai abandonou a todos, o que fez Alcala se sentir indesejado, não amado e culpado por ter feito algo para o pai ter ido embora. Assim, a mãe de Alcala levou ele e os filhos para morar em Los Angeles, onde teriam um recomeço e uma vida melhor.
Aos 17 anos, Rodney Alcala se alistou no exército dos EUA e trabalhou como escriturário por quatro anos. No entanto, ele foi dispensado após ser diagnosticado com transtorno de personalidade antissocial, segundo o psiquiatra militar que lhe deu alta médica.
Em 1968, ele se formou em Artes na Escola de Belas Artes da UCLA. Depois, se mudou para Nova York para estudar Cinema na NYU, onde teve aulas com o diretor Roman Polanski. Aqui, ele passou a se chamar John Berger, marcando o ponto de virada na vida de Alcala.
O serial killer fez vítimas em Nova York, Los Angeles e Wyoming, Ele normalmente dizia para as mulheres que era um fotógrafo e queria tirar fotos delas para um concurso.
O ponto alto foi quando Alcala participou do Dating Game, em 1978, um dos programas mais famosos dos EUA na época. Criado por Chuck Barris, a atração trazia uma solteira ou um solteiro em busca de um relacionamento. Entre os três candidatos à disposição, o escolhido teria a chance de ter um encontro com a pretendente após o final do programa.
No dia 13 de setembro, Cheryl Bradshaw participou do programa, levando-a a escolher Rodney Alcala como seu candidato ideal, cuja identidade é revelada apenas ao final. No entanto, Cheryl se recusou a ter o encontro com o Alcala, pois começou a se sentir mal perto dele, dizendo que “ele estava agindo de forma muito assustadora”, segundo a entrevista que ela deu ao The Sunday Telegraph, em 2012.
Os outros dois rapazes concorrentes também relataram sobre o comportamento bizarro de Alcala. Já os produtores afirmaram que nunca souberam sobre a verdadeira história de Rodney antes de permitir a sua inscrição no programa. Foi a intuição forte de Cheryl que a salvou de ser mais uma vítima do serial killer.
Após esta rejeição, Alcala voltou a fazer mais vítimas. Apenas em 1979, que seu currículo sangrento foi descoberto pelas autoridades. Ele fez várias vítimas, incluindo meninas de 8,12, 13 e 23 anos, passando a integrar a lista do FBI dos Dez Fugitivos Mais Procurados. Em uma década, ele fez 35 vítimas, as investigações estimaram que ele tenha feito muito mais. No filme, é citado que o número de vítimas chega a 130, mas nem todas tiveram provas ou testemunhas para confirmar.
Justamente por não ter testemunhas, Alcala era liberado, mas retornava à prisão após um cometer um novo crime. Entre idas e vindas à prisão (o que chega a ser irônico e revoltante), ainda foi difícil condená-lo, mesmo após sua passagem na TV e com novos crimes nas costas.
Finalmente, Rodney Alcala foi sentenciado a pena de morte na California em 2010 pelo assassinato de cinco mulheres, mesmo sendo suspeito de mais de uma centena de crimes.
Mas sua sentença foi modificada para prisão perpétua após serem abolidas em Nova York, onde duas vítimas foram feitas. A pena de morte não é uma opção em NY desde 2007, que foi reduzida à prisão perpétua.
Alcala foi julgado e condenado em outros estados. Ele passou seus últimos dias na prisão estadual da Califórnia. Ele cumpriu a sentença até os 76 anos, vindo a falecer em 2021, aos 77 anos, de causas naturais, na prisão.
Ficha Técnica
A Garota da Vez
Direção: Anna Kendrick
Elenco: Anna Kendrick, Daniel Zovatto, Tony Hale, Auntumn Best, Nicolette Robinson, Pete Holmes, Kathryn Gallagher, Kelley Jakle, Matt Visser, Jedidiah Goodacre, Dylan Schmid, Karen Holness, Denalda Williams, Jessie Fraser e Max Loyd-Jones.
Duração: 1h35min
Nota: 3,2/5,0