Entre as melhores sensações de sentir é a de sair de uma sala de cinema feliz e satisfeita(o) por ter visto um excelente filme, e Pisque Duas Vezes (Blink Twice) vai te proporcionar tal sensação.
Com a estreia de Zoë Kravitz na direção, Pisque Duas Vezes é um terror psicológico que não te prepara para o que está por vir. É possível até pensar em possibilidades sobre o que a história vai tratar com as pistas deixadas durante o desenvolvimento, mas quando a reviravolta é entregue, o espectador é surpreendido de forma impactante pela mensagem pesada, atual e feita com maestria. E vou te dizer as razões para assistir este filme o quanto antes.
Pisque Duas Vezes acompanha Frida, uma garçonete que deseja crescer na vida e procura por oportunidades que possam melhorar a sua rotina. Mas entre os intervalos, ela gosta de ficar distraída no celular. E ela fica fascinada com os vídeos de Slater King, um poderoso bilionário e empresário que não esconde seus gostos peculiares, muito menos os seus problemas, o que o faz revelar seu tratamento com terapia, sua possível redenção diante de erros que desconhecemos e o início de suas férias.
Assim, Frida e sua amiga Jess são chamadas para trabalhar servindo em uma grande festa de Slater King, a oportunidade perfeita para Frida se aproximar do ricaço. A química dos dois é quase que instantânea, duvidosa aos olhos do público e fácil de ser comprada. Isso resulta em um convite irrecusável: passar alguns dias de descanso e diversão em uma ilha privativa de Slater, ao lado de seus amigos.
A viagem começa como um sonho para não ser acordado, no entanto, à medida que os dias passam, situações bem estranhas começam a acontecer, o que faz Frida levantar o primeiro sinal de alerta e a questionar tudo ao seu redor, especialmente o lugar onde está. Assim, ela vai atrás da verdade que pode mudar a sua vida para sempre.
A verdade é que quanto menos você souber sobre o filme, melhor. E mesmo que tenha alguma ciência sobre o que pode se tratar, ainda assim, pode não saber completamente tudo. E este é o maior acerto de Pisque Duas Vezes, justamente por trabalhar um mistério vagarosamente a fim de alimentar a angústia e a aflição tanto do espectador quanto dos personagens, que desconhecem o cenário e a situação onde se encontram.
Afinal, o quão estranho pode ser duas mulheres serem convidadas por um bilionário a fazer uma viagem para sua ilha particular? Pelo menos, é uma estranheza mínima, mas um ato totalmente fácil de ser compreendido, uma vez que fora uma escolha da própria protagonista em realizar este desejo específico diante de uma oportunidade que não bate duas vezes na porta.
Zoë Kravitz acerta de primeira tanto na direção quanto no roteiro feito ao lado de E.T Feigenbaum. Todo o conjunto da obra é trabalhado para orquestrar a atmosfera de mistério e horror e causar angústia diante do que vemos, seja o cenário, os figurinos, e elementos estranhos com um significado por trás.
O visual de Pisque Duas Vezes é um dos mais elegantes, iluminados e aconchegantes, o que cria uma vontade de estar ali também, assim como a protagonista. Mas à medida que outros elementos estranhos são injetados na trama, tal vontade e prazer de estar ali vão diminuindo, enquanto a dúvida e o medo crescem como efeitos colaterais.
Dos tais elementos, temos o perfume misterioso deixado em cada quarto; o fato das mulheres convidadas ficarem vestidas igualmente; os funcionários da casa agirem como robôs; uma senhora excêntrica que caminha e solta palavras aleatórias; e o ápice de tudo: lapsos de memória dos mais recentes momentos.
Além disso, as suspeitas e a estranheza que pairam na ambientação são bem trabalhadas em cenas aparentemente bonitas, mas assustadoras, com cortes rápidos, closes nos rostos dos personagens para captar a dúvida, enquanto a crescente do horror se desenvolve nas entrelinhas até a reviravolta acontecer.
Afinal, o que realmente está acontecendo nesta ilha? Estas pessoas sabem onde estão? São perguntas que ficam martelando na cabeça a cada pista, estranheza, atitude suspeita e pequenas reviravoltas até o ápice do horror ser atingido.
E todo este terror psicológico é orquestrado por atuações incríveis em que alguns até vão surpreender neste filme.
A atriz Naomi Ackie está formidável como Frida, uma mulher que mostra o que quer, os seus desejos e o objetivo de estar ali. O seu livre arbítrio a faz escolher o que é melhor, mas as consequências a colocam em um jogo obscuro que vai se revelando em seus olhos à medida que ela vai descobrindo o que realmente está acontecendo. Naomi entrega expressões que hipnotizam, desde a alegria, a dúvida, o horror e a força que a faz tomar decisões ousadas.
Channing Tatum vai te surpreender em Pisque Duas Vezes ao entregar o seu primeiro papel bem fora da curva do que ele costuma fazer. Slater King é charmoso, envolvente, atraente, um homem que quer proporcionar alegria e prazer aos outros. Mas o que ele realmente esconde? Quem ele realmente é?
Crítica: Pequenas Cartas Obscenas
Outra personagem que rouba a cena é Sarah, interpretada por Adria Arjona, que é forte, durona e sarcástica, além de não esconder quando não quer que determinada coisa aconteça. E tais características vão lhe ajudar no timing certo. Inclusive, ela tem um pequeno monólogo muito bom que explana a forma como a mulher é vista, em termos de sexualização e objeto. Ao mesmo tempo, dá angústia do que pode vir a acontecer logo em seguida.
Os demais personagens coadjuvantes como Jess (Alia Shawkat), Vic (Christian Slater), Stacy (Geena Davis), Cody (Simon Rex), Tom (Haley Joel Osment), Camilla (Liz Caribel), Lucas (Levon Hawke) e Heather (Trew Mullen) dão um complemento perfeito que chocam bastante quando tudo fica às claras.
******CONTÊM SPOILERS******
O que está acontecendo na ilha?
O ponto alto de Pisque Duas Vezes é a surpresa da reviravolta e o objetivo desta história. Este é um filme feito e escrito por uma mulher, uma trama sobre mulheres e para as mulheres.
À medida que as pistas misteriosas se encaixam, os elementos são decifrados pelas interpretações, juntamente com o plot twist que te pega de surpresa, Pisque Duas Vezes finalmente revela uma premissa sobre traumas e abusos, além do fato de mostrar sobre como as mulheres são vistas e tratadas em um universo dominado por homens.
O que realmente acontece nesta ilha é que as mulheres convidadas são abusadas pelos homens durante as festas. As roupas iguais e brancas são uma forma de controle, assim como o misterioso perfume que apaga a memória. É por esta razão que nenhuma se lembra do que ocorreu na noite anterior, causando estranheza e o lapso de memória, juntamente com a perda da noção de tempo e espaço.
E as cobras que aparecem pela ilha? Bem, os seres rastejantes são colocados propositalmente pela funcionária a fim de picar as mulheres para acabar com o efeito do perfume e, assim, recuperar a memória. Aqui, Zoë Kravitz faz uma analogia à história de Adão e Eva. Enquanto a cobra induz Eva a morder a maçã, em Pisque Duas Vezes, a cobra é quem salva a “Eva” das “mãos de Adão”. É o veneno da cobra que faz todas despertarem deste transe de horror.
Infelizmente, a primeira a despertar é Jess que, ao ser picada pela cobra, seu nariz sangra e sua memória volta. Mas infelizmente ela é morta por Slater quando descobre que ela está consciente.
À medida que todas vão despertando, algumas se enfurecem instantaneamente, deixando um rastro de sangue ao atacar seus abusadores, o que resulta em tragédias desmerecedoras para elas.
É Frida e Sarah que protagonizam especialmente a reta final de Pisque Duas Vezes, que mergulha de vez na atmosfera de horror que, finalmente, explica a razão para isso acontecer.
O filme satiriza os ricaços que usam dos seus traumas para fazer o que bem entender, ao invés de tratá-los, assim como debocha daqueles que usam as redes sociais para confessar os seus erros e ir atrás do perdão, atraindo milhares de seguidores com o seu vitimismo. E é exatamente isso que Slater King faz.
Slater teve a vida marcada por abusos de seu pai, em que sua irmã, Stacy, também se torna vítima. Mas ao invés de expor e condenar o culpado, Slater decidiu que é melhor esquecer do que perdoar, fazendo exatamente o que seu pai fazia com suas vítimas na ilha.
Além disso, o filme também faz questão de apontar aqueles que se omitem perante ao errado, como vemos com o personagem Lucas, acusado de não ajudar as mulheres. Ao mesmo tempo, a manipulação é usada para colocar este personagem nesta posição perigosa, uma vez que o filme subtende que Lucas também era abusado na ilha.
Em meio às mortes, o perigo e todas as provas queimadas no incêndio na ilha, Frida toma uma decisão a seu favor, afinal, uma denúncia não a levaria a nenhum lugar, muito menos ajudaria as mulheres, já que, mesmo provando, muitos abusos não são condenados.
Por conta disso, ela usa o perfume do esquecimento em Slater King, que o faz esquecer de tudo o que aconteceu. Ela se casa com ele e se torna esposa e chefe de toda esta riqueza, como vemos novamente na festa que o casal King dá. Aliás, o terapeuta de Slater, Rich (Kyle MacLachlan), responsável por dar os perfumes e ciente de tudo o que estava acontecendo, é preso. Acredito que não pela polícia, mas por ordem de Frida.
Considerações finais
Pisque Duas Vezes é um terror psicológico de excelência ao abordar o horror que as mulheres podem viver sob o domínio dos homens, seja por abusos, submissão, exploração sexual e manipulação. Um filme que usa de elementos interpretativos, cenários que transmitem uma sensação falsa de alegria e prazer para abordar uma temática forte, ousada e muito atual com um elenco formidável que dá conta do recado.
Pisque Duas Vezes merece e deve ser assistido por todos, especialmente os homens.
Ficha Técnica
Pisque Duas Vezes
Direção: Zoë Kravitz
Elenco: Naomi Ackie, Channing Tatum, Adria Arjona, Geena Davis, Christian Slater, Haley Joel Osment, Alia Shawkat, Simon Rex, Liz Caribel, Levon Hawke, Trew Mullen, Kyle MacLachlan, Cris Costa, Saul Williams, Aaron Himelstein e Tiffany Persons.
Duração:1h42min
Nota: 5,0/5,0