Se alguém te contasse uma história de amor sobre a princesa e o monstro, será que você acreditaria? Parece surreal e até absurdo, mas A Forma da Água (The Shape of Water) faz você compreender e ainda te absorve em um mundo onde a forma de amor mais estranha se torna possível, bela e única. Dirigido pelo talentosíssimo Guillermo del Toro, a trama é ambientada no cenário dos Estados Unidos da década de 60, na época da Guerra Fria e relata um conto de fadas dos mais imaginativos. Em meio a tantos conflitos políticos e transformações sociais, a jovem Elisa (Sally Hawkins), muda e zeladora em um laboratório experimental secreto do governo, se afeiçoa a uma criatura fantástica capturada na América do Sul, que infelizmente sofre maus tratos pelas mãos do agente do governo, Richard Strickland (Michael Shannon). Enquanto os militares querem estudá-lo a fim de encontrar um meio de vencer os comunistas russos e ainda ultrapassar na corrida espacial, outros tentam proteger a criatura, uma vez que tem muito mais a oferecer vivo ao invés de morto. Ao criar um laço sentimental, Elisa toma uma decisão: executar um plano de resgate para levar o “homem anfíbio” de volta ao seu habitat. Para isso, ela irá contar com a ajuda do amigo e vizinho Giles (Richard Jenkins) e da colega de trabalho, Zelda (Octavia Spencer).
O que dizer de A Forma da Água? É uma história simples? Sim, mas o roteiro e a direção executam tão bem tal simplicidade, transformando uma história poética em um filme fantasioso palpável, apaixonante e belo. Sim, A Forma da Água emerge delicadeza e beleza em meio a cenas obscuras e até violentas, o que torna esse conto de fadas mais sombrio, diferente do que estamos acostumados a assistir ou ler. Em vagos momentos é até possível se lembrar de A Bela e a Fera, só que envolto a um clima sublime e trágico, com elementos de erotismo e violência que vão desde a bela moça que se masturba todas as manhãs até a grotesca cena dos dedos podres sendo arrancados.
A trama é um conto de fadas inverossímil, afinal uma moça se apaixonar por um monstro não é comum, mas Del Toro torna tal estranheza em um amor crescente e forte, tornando o absurdo em real, fazendo o público se apaixonar e torcer pelos personagens em suas duas horas de duração. Mais do que um conto, A Forma da Água traz como pano de fundo assuntos pertinentes e relevantes, como o amor entre espécies distintas, um amor que supera as diferenças, tornando os defeitos meramente figurantes nessa jornada. Além disso, o filme trata sobre amizade, lealdade, amor paternal, abuso de poder, machismo, homofobia, racismo (a cena da lanchonete é um belo exemplo), entre outros.
Do ponto de vista técnico, o filme traz um dos mais belos trabalhos do diretor, muito bem ambientados em uma digníssima cenografia elaborada por Paul D. Austerberry. Sob o clima dos anos 60, a protagonista mora em um apartamento localizado em cima de um antigo cinema, trazendo uma sensação de simplicidade e aconchego. Quando acompanhamos Elisa até o local de trabalho, o ambiente ganha um roupagem mais fria, fechada, remetendo a ao estilo ficção científica, ganhando tonalidades mais escuras (tons esverdeados e azul petróleo). Quando retornamos para a rua ou para a casa da personagem, o filme ganha mais vida, com cores vivas e vibrantes, revelando até o atual estado de emoção da protagonista.
A trilha sonora conversa perfeitamente com a história e a época em que se passa, dando a sensação de que estamos sentados no chão ouvindo uma boa e velha vitrola. Muitas vezes, a trilha sonora fica por conta da televisão ligada na casa de Giles, exibindo desde filmes clássicos até musicais, com direito a Carmem Miranda na tela. O trabalho de Alexandre Desplat está formidável.
Personagens
A Forma da Água seria um dos melhores trabalhos de Sally Hawkins? Não sei, mas posso dizer com certeza que a atriz está excepcional na pele de Elisa Esposito. A protagonista esbanja carisma, delicadeza e ternura em uma ótima performance apenas com o seu olhar, suas expressões faciais e, é claro, a linguagem dos sinais, uma vez que a personagem não pode falar devido a um problema de nascença. Por ter esse problema, Elisa muitas vezes se vê solitária, diferente e deslocada por não se encaixar em uma sociedade preconceituosa e arrogante. Ela passa ter mais segurança sobre quem ela é quando conhece o “homem anfíbio”.
Há muito tempo que não vejo nos filmes um vilão grotesco que transpira ruindade da cabeça aos pés. O público ama odiar o personagem de Michael Shannon, um antagonista nojento (tanto nas atitudes quanto na higiene), repulsivo, violento e estressado. Muitas vezes, o agente Richard Strickland mostra que essa é sua natureza, mas também revela que as circunstâncias moldam a sua personalidade. Aliás, é possível notar o teor contraditório do personagem: patriarca de uma família tradicional americana, cuja profissão lhe deu um cargo bom e alto, não passa de um ser monstruoso, preconceituoso e agressivo.
Vizinho e amigo, Giles (Richard Jenkins) representa o amor paternal que se tornou ausente cedo demais na vida de Elisa. O público acompanha a cumplicidade dos dois, o que torna todas as cenas dos personagens adoráveis e marcantes.
Já a colega de trabalho Zelda, muito bem interpretada pela atriz Octavia Spencer, é extremamente falante, o que dá um tom cômico ao filme. Além disso, ela é mais um exemplo de apoio e amizade abordados na história.
Não podemos esquecer de Doug Jones que, mesmo coberto de maquiagem e efeitos, entrega um ótimo “homem anfíbio”, que desperta o seu lado selvagem em alguns momentos; um lado agressivo com aqueles que lhe fazem mal; e um lado amoroso e sentimental, revelando semelhanças e identificações com os humanos. Suas cenas vão de adoráveis e cheias de amor até violentas. É um monstro com várias facetas, dons surpreendentes e um coração único.
Considerações finais
Em sua mais pura simplicidade, A Forma da Água é um poema de amor em forma de fantasia. É um conto de fadas estranho e belo sobre uma moça muda que vê sua vida se transformar ao conhecer um monstro que é só por fora. Guillermo del Toro molda essa história fantástica com elementos excêntricos, personagens carismáticos, um vilão revoltante e uma criatura única que faz você se apaixonar. Depois desse texto, você acreditaria na história de amor da princesa e o monstro?
Ficha Técnica
A Forma da Água
Direção: Guillermo del Toro
Elenco: Sally Hawkins, Octavia Spencer, Michael Shannon, Richard Jenkins, Doug Jones, Michael Stuhlbarg, David Hewlett, Nick Searcy, Nigel Bennett, Lauren Lee Smith, Morgan Kelly e Dru Viergever.
Duração: 2h03min
Nota: 9,5