Sem dúvida, Pobres Criaturas (Poor Things) é um dos melhores filmes do currículo de Yorgos Lanthimos, que traz uma das melhores performances da atriz Emma Stone. Com 11 indicações ao Oscar, o longa traz uma loucura complexa, divertida, inteligente e transformadora sobre as vertentes de ser mulher na sociedade. É um filme para se digerir por dias e continuar fascinado com o que viu. Vale a pena assistir e vou te dizer o porquê.
Com direção de Yorgos Lanthimos – que já entregou o ótimo A Favorita (2019), Pobres Criaturas apresenta Bella Baxter e sua faceta um tanto quanto estranha. Ela é uma mulher que voltou à vida graças ao brilhante e pouco ortodoxo médico cientista Dr. Godwin Baxter, que realiza um experimento fora do comum: ele coloca o cérebro de um bebê no lugar do cérebro de Bella, ressuscitando-a e dando a chance dela começar do zero.
Com o corpo de uma mulher, mas com a mentalidade de um recém-nascido, Bella age, reage e tem ações de uma criança em fase de aprendizados e descobertas, desde a falar e andar, entender o certo e errado, a compreender o funcionamento do seu corpo, até ter a compreensão sobre o mundo lá fora e como poderá lhe acolher.
É no meio deste processo que Bella começa a nutrir o enorme desejo de conhecer o mundo e descobrir o que realmente gosta ou não e o que quer para si. Mesmo com receios e inseguranças, Godwin deixa que Bella ‘fuja’ com Duncan Wedderburn, um advogado astuto e debochado, para iniciar uma aventura pelos continentes. É nesta viagem que a protagonista irá ver, saber e entender o que é ser mulher e firmar o seu propósito de defender a igualdade, libertação e o seu livre arbítrio para tomar decisões a favor de si e de quem ela possa ajudar.
Toda a construção de Pobres Criaturas é formidável do início ao fim, pois todos os elementos ajudam a contar esta jornada de crescimento, evolução, autoconhecimento e liberdade.
Crítica: Anatomia de uma Queda
De início, temos um filme em preto e branco ao mostrar Bella em seu início de vida (mesmo com o corpo adulto). Em uma vibe ‘Frankenstein’ versão feminina, a ideia de usar apenas estes dois tons na tela é para revelar uma fase de aprendizado controlado, em que Bella vive em um aprisionamento domiciliar, cujo local é visto como seguro, enquanto o mundo lá fora é perigoso, como é dito sempre por seu “pai”, que a protege de todas as formas possíveis.
Mas é nítido que a evolução de Bella cresce à medida que ela vai tomando conhecimento sobre a vida e seu corpo, aguçando a curiosidade e aumentando o desejo de saber o que há mais lá fora. A ideia de fuga é cutucada com a presença de Duncan que lhe oferece a oportunidade de explorar e, assim, alimentar esta evolução da protagonista, que não pensa duas vezes em aceitar a oferta, deixando a casa, o seu protetor/mentor e demais para trás.
Assim, Pobres Criaturas mergulha em uma paleta de cores fortes, bem saturada na ambientação, enquanto o tom pastel fica em torno dos figurinos. O propósito é dar cor e vida às descobertas de Bella mundo a fora, que fica encantada com o que vê, mas também se choca com uma realidade não tão amável assim, especialmente com as mulheres.
Outro ponto técnico muito bem aplicado é o uso da lente olho de peixe em algumas cenas, seja para acompanhar algo específico dos personagens, uma espécie de espionagem ao que eles conversam ou fazem. Além disso, o diretor faz questão de sempre deixar o close na protagonista para mergulharmos em suas expressões e sentimentos a fim de que o espectador também sinta e compreenda exatamente o mesmo que ela, ao mesmo tempo que se constrange ao adentrar em certas intimidades da personagem.
Em uma jornada de crescimento, transformações e descobertas, Pobres Criaturas retrata de um jeito esquisito e bem impactante a jornada de Bella Baxter como mulher. Ao ganhar uma segunda chance de vida, Bella tem a oportunidade de descobrir tudo novamente – com o cérebro resetado – e se moldar como ela realmente quer ser. O filme traça uma história que traz como temática o feminismo, empoderamento, liberdade e direitos de um jeito bem chocante e literal, seja nos diálogos ou nas cenas explícitas.
É a construção da mulher em uma sociedade que poda e limita o feminino apenas aos bons costumes, repleto de machismo e sexismo, uma camada que é drasticamente rompida por Bella, que quebra as regras, contradiz e vai no sentido oposto ao moldar o seu próprio caminho.
E sim, é uma temática relevante e já vista em outros filmes, mas que se torna chocante ao expor com impacto cada camada tanto da protagonista em desenvolvimento quanto das situações. É o tipo de filme que o espectador precisa ter a mente aberta para aceitar o absurdo, o choque e a estranheza para entender as entrelinhas que são desenhadas para qualquer um compreender exatamente o que está sendo dito.
Quem é Bella Baxter?
Não se pode falar de Pobres Criaturas sem mencionar o formidável elenco que este filme reúne, com destaque para Emma Stone que rege toda a história com maestria.
Crítica: Segredos de um Escândalo
Se você já gosta dos trabalhos de Emma Stone, prepare-se para se surpreender mais uma vez com uma performance altamente deslumbrante da atriz.
Emma encarna uma Bella com corpo de mulher e a mente na qual acompanhamos sua construção. É como se acompanhássemos uma pessoa desde a infância até a fase adulta, passando pela adolescência e puberdade.
Bella é literal em vários sentidos, não esconde o prazer que sente ao tocar seu corpo; não mente quando não gosta de uma comida e a textura dentro de sua boca; fala exatamente o que pensa e sente sem rodeios; questiona daquilo que duvida ou vai contra ao que quer ou quando a obriga a agradar quem está à sua volta; se sente podada quando controlada ou limitada; foge e dá as costas àqueles que tentam lhe prender; mergulha no novo, permite sentir e passar por situações estranhas para saber o que realmente deseja para si ou necessita em determinada ocasião.
Além disso, Bella também passa pela famosa virada de chave ao se chocar com uma realidade cruel, fria e calculista com os menos afortunados, na qual tenta ajudar, mas aos poucos, toma consciência de que não dá para tornar o mundo melhor sozinha, mas é possível fazer a sua parte e contribuir para que a sociedade fique melhor aos poucos.
E se tem algo que Emma Stone sabe fazer é dar vida a esta personagem, seja nas performances corporais que evoluem conforme sua evolução, como vemos no seu jeito de andar, falar, dançar e se vestir; as expressões faciais são sensacionais em que, muitas vezes, causa euforia e risadas seguidos de diálogos literais e verdadeiros, já que emitem exatamente o que a personagem pensa e deseja.
Bella Baxter é o retrato da construção do empoderamento feminino em meio a uma sociedade que tenta lhe podar.
Outro personagem que ganha os holofotes em Pobres Criaturas é Mark Ruffalo que entrega um advogado debochado, charmoso e com boa lábia, cuja faceta verdadeira se revela aos poucos. Sem dúvida, este é um dos papeis mais desafiadores do ator, que vai do charme e atração até o machismo e controle em uma devagar e excelente virada de chave. A química de Stone e Ruffalo beira ao cômico, com cenas provocativas tanto nas palavras, quanto nas cenas de sexo. E pode acreditar: você dá risada e passa raiva com Duncan, e se diverte quando Bella o faz “comer o pão que o diabo amassou”.
Aliás, um ponto a se considerar é que Pobres Criaturas apresenta muitas cenas de sexo sim, nada gratuitas, pelo contrário, não só ajuda Bella a explorar o corpo, como conhecer a libertação sexual, como também a entender o que é certo ou errado no mundo feminino.
O ator Willem Dafoe é outro que merece aplausos por mais um ótimo personagem em seu currículo. Ele entrega um Dr. Godwin, que é retratado como ‘Deus’ por dá vida à Bella, na qual se sente no poder de controlá-la para manter a segurança da ‘filha’, mas que toma consciência de que não conseguirá por muito tempo. Ele não demonstra arrependimento de sua criação, mas sabe que deixar Bella partir foi a melhor decisão, mesmo que a ausência de sua cria fosse extremamente sentida.
Outro que também se destaca na história é Max McCandles (Ramy Youssef), assistente do Dr. Godwin que aprecia suas descobertas e performances na medicina e se choca com sua criação, seu passado e forma de vida. Encantado por Bella, Max a quer perto de si, mas aos poucos também enxerga que isso não acontecerá da forma como deseja.
Considerações finais
O último ato de Pobres Criaturas nos traz novas informações sobre Bella e quem ela era antes de ganhar uma nova vida, com reviravoltas interessantes que culminam em um desfecho medonho e esplendoroso, mostrando a completa transformação da protagonista.
Pobres Criaturas fala sobre a mulher, o empoderamento feminino, a sociedade machista e a evolução humana de forma estranha e chocante, mas bem literal na mensagem que quer passar. O elenco é formidável, mas é Emma Stone quem dá brilho e vida a uma história que ganha uma direção à lá esquisita e emblemática e de Yorgos Lanthimos. Para bom entendedor de Pobres Criaturas, uma Bella Baxter basta.
Ficha Técnica
Pobres Criaturas
Ficha Técnica
Direção: Yorgos Lanthimos
Elenco: Emma Stone, Mark Ruffalo, Willem Dafoe, Ramy Youssef, Christopher Abbott, Margaret Qualley, Jerrod Carmichael, Suzy Bemba, Hanna Schygulla, Attila Dobai e Kathryn Hunter.
Duração: 2h21min
Nota: 5,0/5,0