Assistir ao filme sem antes ter visto o trailer ou se quer ter lido a sinopse é uma das experiências mais legais que gosto de fazer. Entrar no cinema e descobrir aos poucos do que se trata a história torna a reflexão e interpretação sobre o que se viu mais rica, livre de qualquer pré-conceito. Foi assim que fiz com Mudbound – Lágrimas Sobre o Mississipi, afinal queria descobrir a razão de o filme ser indicado ao Oscar em quatro categorias. Dirigido por Dee Rees, a trama acompanha a tímida Laura (Carey Mulligan) que acredita ter tirado a sorte grande quando encontra Henry McAllan (Jason Clarke), um homem um pouco bruto, mas interessado nela. Após o casamento, a família se muda para uma fazenda no chuvoso delta do rio Mississipi, um local isolado da cidade e um pouco solitário. Enquanto Laura enfrenta dificuldades para se adaptar a nova vida rural, ela e sua família estabelecem uma conexão com os Jackson, uma família negra responsável por ajudar no trabalho pesado com o plantio e a colheita. Enquanto o pai idoso de Henry, Poppy (Jonathan Banks) tenta manter os privilégios brancos no terreno à base do preconceito, o irmão de Henry, Jamie (Garrett Hedlund) inicia uma boa amizade com o filho dos caseiros, Ronsell Jackson (Jason Mitchell), pelo fato de ambos terem lutado na guerra e compartilhado os mesmos traumas. A partir dessa amizade, inicia um violento conflito de etnias, gêneros e classes sociais que marcam a convivência entre as famílias.
Logo nos primeiros minutos do filme, o roteiro já deixa claro que trata-se de uma narrativa não linear, em que vemos determinada cena com ambas famílias e, logo em seguida, voltamos ao passado para saber como cada um se conheceu até fecharmos o ciclo e voltarmos à primeira cena onde tudo se sucedeu. Mudbound não é um filme que você entrega rapidamente um veredito; é uma história que necessita de digestão, justamente por não ter um único protagonista e um único tema. De imediato, o público toma consciência de que o racismo é o assunto em destaque, mas a partir dessa temática, nascem outras ramificações que trazem mais assuntos de suma importância, como a posição inferior da mulher na família; o preconceito e a violência concentrados em cidades pequenas; os traumas deixados pela guerra; o avanço de seitas como a Ku Klux Klan; as formas de pensamento e ação que diferem a cidade do campo; e a posição entre brancos e negros e a dependência que um tem do outro. Cada tema tem sua cena, seus diálogos com seus respectivos personagens.
Do primeiro até a metade do segundo ato, o espectador acompanha a família de Laura, a difícil adaptação ao campo e o relacionamento entre eles. A partir daí, o filme progride lentamente no encontro e na convivência da família McAllan com a família Jackson e, a partir daqui, passamos a conhecer um pouco mais sobre Florence (Mary J Blige), Hap (Rob Morgan IV), Ronsell, Weeks (Kelvin Harrison Jr) e outros integrantes e acompanhamos a árdua rotina no trabalho e na dependência sob os holofotes do preconceito que caminha gradativamente até a sua eclosão, mudando o rumo de tudo e todos.
Algumas cenas podem parecer dispensáveis e, de fato, até são, mas o filme faz questão de estabelecer uma rotina em que mostra a dependência e a submissão dos negros. Na cena em que as filhas de Laura estão doentes, Florence precisa deixar os seus filhos em casa, para cuidar de estranhos. Quando Hap fica enfermo, Henry desperta o seu lado egoísta e sem compaixão ao falar que o patriarca da família Jackson precisa trabalhar a qualquer custo e ainda pagar para trabalhar se quiser ter algum lucro da produção. Entendem quando digo que há uma relação de dependência injusta entre as famílias? Aliás, o filme dá mais espaço ao núcleo dos McAllan, com destaque para Carey Mulligan, do que para os Jackson. Mesmo apresentando uma boa interpretação, Mary J Blige não tem nenhuma cena em destaque que justifique a sua indicação ao Oscar. Mas essa é apenas a minha opinião.
Enquanto acompanhamos as famílias caminharem disformemente, a segunda metade do segundo ato traz a amizade de Jamie e Ronsell, uma aproximação improvável, mas que se torna verdadeira a partir das palavras e atitudes sinceras de cada um. Por terem lutado na guerra, Ronsell e Jamie dividem os traumas e os medos que ainda carregam, o que faz uma empatia entre eles crescer. Mas também mostram os incômodos ao retornarem a um local que não lhe pertencem mais, a uma vida que não é mais a mesma, especialmente para Ronsell que experimentou na Europa uma rotina livre de preconceitos, enquanto Jamie desfrutou da sua liberdade e se viu útil à sociedade.
Mesmo com uma cena ou outra descartável, Mudbound não dá ponto sem nó e, após estabelecer uma conexão forte entre as famílias, o filme inicia um terceiro ato cru e muito cruel, em que o racismo e a violência eclodem, mudando a vida de todos os personagens. Garrett Hedlund, Jason Mitchell e Jonathan Banks entregam o melhor de suas performances, fazendo o público ficar estático na cadeira diante do que está se vendo na tela. A reta final é triste e bem dolorosa, justamente por saber que, um dia, tudo aquilo já foi verdade em determinada época da história mundial e, até hoje, permanecem resquícios desse preconceito. Depois de presenciar tamanha brutalidade, a última cena é de alívio e recomeço, revelando que a felicidade fala mais alto, mesmo quando o pior acontece.
Considerações finais
Mudbound – Lágrimas Sobre o Mississipi é um filme que deve ser digerido aos poucos por apresentar mais de um protagonista, boas interpretações e vários temas importantíssimos que marcaram a história do mundo. Mesmo arrastado em alguns momentos, o longa progride e impacta a ponto de deixar qualquer um no chão. É um filme que merece a sua atenção.
Ficha Técnica
Mudbound – Lágrimas Sobre o Mississipi
Direção: Dee Rees
Elenco: Carrey Mulligan, Garrett Hedlund, Mary J Blige, Jason Clarke, Jason Mitchell, Rob Morgan IV, Jonathan Banks, Kelvin Harrison Jr, Lucy Faust, David Jensen e Geraldine Singer.
Duração: 2h14min
Nota: 8,0