Após os grandes sucessos Cisne Negro e Noé, Darren Aronofsky retorna ao cinema com Mãe! (Mother!) um filme que conta a história de um casal que tem o relacionamento testado quando pessoas não convidadas surgem em sua residência, acabando com a tranquilidade entre eles. O longa é um suspense psicológico sobre amor, devoção e sacrifício. Tirando esses três últimos adjetivos, não se deixe levar pela sinopse. Aliás, esqueça a sinopse e o trailer, pois o filme vai muito mais além do que se pode imaginar. Mãe! chega para tirá-lo da zona de conforto, um filme que fará espectadores saírem das sessões devastados e reflexivos com o que acabou de ver, afinal, o que se passou exatamente naquela tela?
Aronofsky é conhecido por elaborar filmes metafóricos e cheios de simbolismos, referências e muita complexidade, sempre com a finalidade de se passar uma mensagem. Neste caso, Mãe! retrata uma história cuja ficha do espectador irá cair quando ele captar os detalhes e compreender o que cada personagem representa. Não é correto dizer que um filme não é determinado para um tipo de público, mas neste caso, a nova obra do diretor não foi feita para a massa. É um filme seleto, complexo, bruto, intenso, desconfortável que, com certeza, irá dividir opiniões sem escapatória. Uns irão amar; outros não.
******ATENÇÃO! CONTÊM SPOILERS******
Qual é o começo?
O primeiro ato dá passos leves e suspeitos para a real intenção do diretor. Nas primeiras cenas, acompanhamos a vida do casal vivido por Jennifer Lawrence e Javier Bardem. Com os seus dons artísticos, Ela quer fazer da casa um lugar paradisíaco; Ele precisa de novos ares e novas inspirações para escrever os seus poemas. Tudo flui naturalmente até o instante em que a primeira pessoa chega ao local. O Homem, interpretado por Ed Harris, se instala em um dos quartos a convite do marido sem ao menos sua esposa ter conhecimento sobre tal decisão. No dia seguinte, a Mulher, interpretada por Michelle Pfeiffer, surge na casa como se estivesse na sua. A partir daí vemos o roteiro fazer uma curva acentuada, pois cria-se uma atmosfera sufocante gradativa, quando o espectador passa a enxergar o que está acontecendo na casa. Uma vez que Ele não dá nenhum tipo de satisfação com relação aos seus “convidados”, a protagonista passa a se sentir sufocada, angustiada, muito menos com privacidade. Pode se dizer que o papel de Jennifer Lawrence nesta primeira parte é bilateral, uma vez que a vemos no papel da mulher sem voz e sem autoridade, já que ela aceita tudo para satisfazer o marido e o vê-lo feliz. Ela também exerce o papel da mãe que chama a atenção, avisa e dá bronca como uma mãe faz com o filho. Só que, neste caso, é como se ela falasse e ninguém a escutasse. Entendem o que eu quero dizer? Pelo menos é isso que eu senti e percebi nesse primeiro ato.
A história real, mas não a única
Ao entrar no segundo ato, a atmosfera muda radicalmente tornando a história cada vez mais angustiante e perturbador. É nesse instante em que o diretor coloca as cartas na mesa e, com as referências e os detalhes colocados em cena, ele deixa claro que Mãe! nada mais é do que o retrato de momentos cruciais da Bíblia: Deus; a criação; a mãe natureza; a história de Adão e Eva e os filhos Abel e Caim; o surgimento da humanidade e o início da crueldade no mundo; o nascimento de Jesus Cristo; o Apocalipse. Aronofsky retrata cada passagem de forma violenta e bruta, causando perplexidade no público. Acredito que as opiniões ficarão divididas assim que cada um captar a sua real intenção.
Afinal, quem é quem nessa história? Quem prestar a atenção vai perceber que os personagens não recebem nomes próprios, sendo intitulados apenas como “Ele”, “Mãe”, “Mulher”, “Homem” e ganhando outros apelidos no desenvolvimento como “baby”, “amor” e “querido”. Além de ser mais uma pista deixada por Aronofsky, acredito que a intenção seja que os personagens possam ser os da Bíblia, mas também outros, uma vez que essa história pode ganhar camadas interpretativas.
Jennifer Lawrence é a mãe natureza, a casa, a base de tudo. De uma forma mais simples, a atriz representa as mulheres que são mães, que cuidam do lar e da família. Mas também ela representa a mulher sem voz, que é ignorada, sufocada e submissa às decisões dadas em sua volta; ela é a pessoa que não ganha a atenção merecida.
Javier Bardem é Deus, o criador da casa e dos elementos que surgem ao longo do filme. Ele também representa o homem egoísta, que não dá o espaço merecido à sua esposa, não leva em consideração os pensamentos e desejos de sua companheira. Apenas a sua voz é a mais importante e nada mais pode ser feito.
Ed Harris e Michelle Pfeiffer representam Adão e Eva, o primeiro homem e a primeira mulher criada por Deus. Irmãos na ficção e na vida real, Brian Gleeson e Domhnall Gleeson representam Abel e Caim e a cena dos personagens é captada por aqueles que já conhecem a história bíblica dos irmãos.
Mas como identificar todos esses elementos? Quem tem um conhecimento básico sobre a Bíblia irá reconhecê-la dentro do filme. Mas também Aronofsky toma o cuidado nos detalhes e nas referências em cada cena para que os espectadores entendam qual é a história que está sendo contada.
Com cenas perturbadoras, um Deus egoísta e uma humanidade cruel que destrói o que a mãe natureza constrói, em um dado momento cheguei a pensar que a intenção do diretor é apontar a figura divina como o causador de todas as atrocidades feitas por sua própria criação. Seria este o caminho que Aronosfsky quis seguir? Eis a questão.
Mas da mesma forma que temos o retrato bíblico nítido no filme, nota-se que a narrativa abre portas para novas interpretações que podem se encaixar na rotina e convivência com as pessoas nos dias de hoje. Quer um exemplo? Mãe! pode ser o simples retrato da visita inconveniente em um domingo de descanso. O começo do filme, como disse anteriormente, retrata a mulher que não quer ficar calada, mas tem sua voz abafada, suas decisões ignoradas, o seu grito sufocado. Mãe! é o retrato da humanidade que pisoteia todos os dias o seu próprio lar, destrói a natureza, mata os animais e outros seres humanos, polui o ambiente, desrespeita as regras e leis estabelecidas. Enfim, esse filme abre um leque de interpretações, pois cada um verá a história de um jeito diferente e acredito que quem for assistir novamente, terá uma nova percepção e perceberá novos detalhes que passaram despercebidos na primeira vez.
Afinal, o que é a substância amarela?
Assim como eu, acredito que muitos sairão do cinema se perguntando: o que é a bebida amarela que a Jennifer Lawrence toma? Um remédio? Uma poção? Tem algum significado para tanta ênfase no pó amarelo? Não sei. Na verdade, há uma resposta ou várias, mas isso é uma coisa que ficará guardada a sete chaves com o diretor. A visão que tive sobre a tal bebida é que a substância serve para trazer um equilíbrio entre a mãe/casa e os seres criados. Cada vez que ela entra em uma crise nervosa, ela bebe a substância. Percebam que no instante em que ela para de beber, o caos domina o seu lar. Mas como disse, essa é a minha visão, mas com certeza há outras interpretações, como também pode não ter significado nenhum.
Considerações finais
O final traz um desfecho cíclico, mostrando que aquela história se repetirá até que dê certo em algum momento. Mãe! é um filme complexo, bruto, intenso, desconfortável, angustiante, perturbador, violento e desesperador. Uma ousadia para o cinema. Não é um filme para o grande público (sem desmerecer a obra ou o espectador). O filme exige bastante do olhar, da análise e do conhecimento de quem assiste. E mesmo que você tenha prestado atenção em tudo, as chances de sair do cinema com dúvidas é grande. Mais do que isso, Mãe! é um filme que não veio para agradar, mas para questionar, dividir as opiniões e, claro, perturbar.
Ficha Técnica
Mãe!
Direção: Darren Aronofsky
Elenco: Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Michelle Pfeiffer, Ed Harris, Brian Gleeson, Domhnall Gleeson, Kristen Wiig, Jovan Adepo, Cristina Rosato, Patricia Summersett, Gregg Bello, Arthur Holden e Ambrosio De Luca.
Duração: 2h02min
Nota: 9,0