Antes do boom da divulgação de Eu, Tonya (I, Tonya), não tinha muito conhecimento sobre a vida de Tonya Harding, apenas sabia sobre o ataque agressivo contra sua concorrente, fato que mudou completamente a carreira e a vida da patinadora. Vinte quatro anos depois, a ex-atleta ganha os holofotes novamente após sua história ganhar uma adaptação cinematográfica sob a direção de Craig Gillespie e o excelente protagonismo de Margot Robbie. Mesmo com ato violento à Nancy Kerrigan sendo o ponto marcante e o mais esperado do público, o filme vai muito mais além e surpreende ao relatar a vida de Tonya Harding desde a infância até o início da fase adulta no mundo da patinação, marcada por momentos tristes e repletos de agressão, abuso, raiva, vingança e a ausência de qualquer sentimento harmonioso.
A vida de Tonya é contada a partir de uma série de entrevistas dos personagens principais vividos pelo próprio elenco. Aqui temos relatos e comentários da protagonista, o marido Jeff (Sebastian Stan), a mãe LaVona Harding (Allison Janney), a treinadora Diane (Julianne Nicholson) e o produtor de televisão (Bobby Cannavale). É aqui que iniciamos a nossa jornada em preto e branco no mundo da patinação, acompanhando a infância, juventude e a vida adulta sombria e agressiva, uma vez que, desde criança, Tonya nunca soube o que era amor de verdade, autoestima balanceada, carinho e compreensão. A trancos e barrancos, a patinadora viveu sob os holofotes do abuso psicológico e da manipulação de sua mãe, a ausência do pai e, ao tentar fugir para um mundo mais amoroso ao lado do parceiro, só encontrou desafeto, desilusão e, é claro, violência.
Para amenizar a dificuldade de acompanhar a brutalidade que rodeia Tonya, o filme mescla um tom cômico negro, com diálogos muito sarcásticos, tanto o da protagonista quanto o de sua mãe. No entanto, acredito que mesmo com um toque de alívio, alguns ainda vão se sentir desconfortáveis com tamanha agressividade verbal ou não e, até mesmo, incômodos por acharem que o filme esteja debochando. Mas não pense dessa forma. Eu, Tonya trabalha muito bem esses assuntos difíceis e acredito que a risada tenha o propósito de deixar o espectador bem desconfortável para mostrar o quão fundamental é debater tais polêmicas, como eles transformam a vida de uma pessoa e a importância de fazer algo para mudar esses parâmetros.
Aliás, é nítido como a personalidade e o comportamento de Tonya se molda com tudo o que ela viveu e aprendeu sob o teto de sua casa. Em uma cena em que ela recebe um tapa do marido, ela diz: “minha mãe me bate, mas me ama, ou seja…” isso mostra claramente o início da destruição da autoestima e do amor próprio que, consequentemente, reflete em sua carreira na patinação. Por diversas vezes, vamos ver Tonya agressiva e irritada por não saber lidar com as críticas com relação à sua performance na arena; a sua autodiminuição por não ter um uniforme de última linha como suas concorrentes ou um corpo perfeito; a força que ela faz para representar a figura que a sociedade quer que ela seja, mesmo que ela não viva isso de verdade. Todos esses elementos são impecavelmente interpretados por Margot Robbie, que encarna uma Tonya forte por sobreviver em todos esses momentos brutos. Mas também, Tonya sofre com as consequências de suas próprias escolhas, sempre se esgueirando ao dizer “a culpa não é minha”. Será mesmo que não é?
Se por um lado vemos essa negatividade na vida da personagem, por outro vemos foco, determinação e força que ela tem sob um par de patins. Tonya Harding foi a primeira mulher americana a fazer salto triplo axel em competições, uma das performances mais difíceis de se realizar na patinação. Ela abandona a escola (sob a livre e espontânea vontade forçada pela mãe) para dedicar horas e horas a fio ao esporte. Os treinos chegavam a durar oito horas por dia, então não podemos dizer que tal performance na arena é uma questão de sorte. Um único momento que me incomoda um pouco é ver Robbie interpretando Tonya aos 15 anos. Mesmo com uma caracterização jovial (aparelho nos dentes e cabelos curtos), a atriz não se encaixa muito bem para interpretar essa faixa etária.
Ela sabia ou não?
No decorrer do filme, a história vai dando pinceladas sobre Nancy Kerrigan até finalmente chegarmos ao famoso ataque que dá um looping na vida de Tonya. Aliás, o filme transforma esse momento em um bom plot twist, com foco em como o ato se sucedeu e quem estava por trás de tudo, fazendo o público ficar indignado com tal revelação. Se você nunca leu sobre esse fato, sugiro que assista sem saber de nada, para que o impacto seja maior. No entanto, a grande questão que fica no ar é se Tonya fazia parte do esquema do ataque ou não. Ela estava ciente do plano ou, simplesmente, também foi uma vítima? Quem está falando a verdade nessa história? Será que toda a revelação foi bem interpretada ou a mídia tornou a história sensacionalista a ponto de acabar de vez com a carreira da patinadora? O filme deixa algumas pontas soltas, mas não propositalmente.
Outras interpretações formidáveis
Além da interpretação magnífica de Margot Robbie, Eu, Tonya apresenta outros personagens cujas performances são excepcionais. O grande destaque vai para Allison Janney e o papel de mãe fria, calculista, abusiva e agressiva. LaVona é o tipo de mãe que uma mulher não deve ser. Não tem papas na língua, abusa psicologicamente de Tonya desde a infância, critica e julga a filha o tempo todo, a ponto de pagar alguém para ofendê-la durante os campeonatos. Por um momento, acreditei que havia algum tipo de sentimento bom em LaVona, mas depois de uma atitude inesperada, ficou claro para mim (assim como ficará para muitos que assistirem) que LaVona nunca amou Tonya. Acredito que ela nunca amou ninguém. Allison Janney traz uma interpretação de arrebentar e seus atos causam repúdio nos espectadores.
Sebastian Stan encarna Jeff Gillooly, marido de Tonya que, no início, parece um rapaz bobo e apaixonado, mas assim que ele levanta a primeira mão para ela, a sua máscara de sonso e frouxo cai instantaneamente. É outro personagem que causa repulsa e raiva no público. Stan consegue segurar muito bem as pontas e entrega uma performance bastante satisfatória.
Considerações finais
O final é redondo e traz o mesmo desfecho da história original da patinadora. Eu, Tonya não é somente sobre um fato marcante na vida da patinadora. Indo mais além, a história aborda a infância, adolescência e vida adulta da personagem, repleta de momentos sombrios, brutos e agressivos, que ganha um tom cômico provocador com o propósito de incomodar quem está assistindo. O filme presta um serviço em abordar assuntos desconfortáveis, mas importantes de serem discutidos. Todos esses elementos são apresentados por um elenco de peso, cujas interpretações são cruas, verdadeiras e sensacionais. Eu, Tonya é uma história que você precisa conhecer. Vale muito a pena conferir este filme no cinema.
Ficha Técnica
Eu, Tonya
Direção: Craig Gillespie
Elenco: Margot Robbie, Allison Janney, Sebastian Stan, Bobby Cannavale, Julianne Nicholson, Paul Walter Hauser, Mckenna Grace, Bojana Novakovic, Joshua Mikel, Jason Davis II, Anthony Reynolds, Cory Chapman e Ruby Bustamante.
Duração: 2h01min
Nota: 9,0